São Paulo, quinta, 18 de dezembro de 1997.



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Brasil vilão

OTAVIO FRIAS FILHO

Tornou-se habitual a divulgação copiosa de relatórios produzidos por ONGs do Primeiro Mundo sobre miséria, violência e desmatamento em países do Terceiro (muitos vestibulandos talvez não saibam que o Segundo era o comunista, que desabou há quase dez anos). Bem aquinhoado nos três quesitos, o Brasil é um dos alvos preferenciais desses levantamentos.
Raramente examinada, a qualidade metodológica dos diferentes estudos varia de um caso para outro. Os pesquisadores são muitas vezes gente politizada, que romantiza a luta contra a injustiça em países remotos, quando não ocorre de serem meras pontas-de-lança de grandes empreendimentos comerciais. Tudo isso em alguma medida é verdade.
Mesmo assim, o efeito prático da divulgação das estatísticas é muito positivo. Há um choque na opinião pública, as autoridades procuram se mexer para preservar a impressão de que estão fazendo alguma coisa. Cresce, de qualquer forma, a consciência dos problemas que o hábito impede cada um de nós, ao contrário do estrangeiro, de ver.
O risco é que essa mentalidade reforce o mito de que existe um maniqueísmo entre Primeiro e Terceiro Mundo, entre eles (os heróis) e nós (os vilões). Desse ângulo, os países ricos seriam o paraíso dos direitos, das oportunidades iguais e da vitória do mérito, em oposição à lei da selva dos países pobres. Isso é verdade, mas não é toda a verdade.
Os países ricos reduziram a injustiça, o privilégio e o preconceito não porque foram acometidos de uma consciência moral superior, mas porque esses problemas eram obstáculos à mercantilização da sociedade como um todo. A igualdade decorre também do efeito uniformizador do dinheiro, conforme ele passa a mediar todas as relações.
Nos países pobres, ao contrário, regiões imensas da vida social ainda não foram incorporadas à lógica da mercadoria. Fora do campo estritamente econômico (e às vezes até dentro dele), nos domínios da vida familiar e pessoal, da religião, do prazer etc., não existem as regras de equivalência baseadas na impessoalidade dos direitos.
O resultado é que nessas regiões selvagens campeia tanto a violência quanto a sensualidade, tanto a desordem e o mandonismo quanto a liberdade pessoal. O sonho de todos os profetas reformadores do Brasil moderno, de Oswald de Andrade a Glauber Rocha ou Caetano Veloso, foi conciliar os valores das duas civilizações.
Não era outra a Roma tropical de Darcy Ribeiro, uma sociedade que retivesse a espontaneidade do "primitivo" sem abrir mão de conquistar a cultura de direitos do Primeiro Mundo. São outros quinhentos acreditar que essa utopia ainda seja realizável -se é que o foi alguma vez-, dado o grau avançado de mercantilização que já atingimos.
Céticos ou crédulos, não sejamos ingênuos. A instalação de uma cultura de direitos (o que sempre coincidiu, até agora, com o império da mercadoria) corrige defeitos ao mesmo tempo em que destrói qualidades. Nossa biodiversidade existencial é a primeira vítima nesse processo em curso, com tudo o que ela tem de ruim e de bom.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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