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Brasil vilão
OTAVIO FRIAS FILHO
Tornou-se habitual a divulgação copiosa de relatórios produzidos por
ONGs do Primeiro Mundo sobre miséria, violência e desmatamento em
países do Terceiro (muitos vestibulandos talvez não saibam que o Segundo
era o comunista, que desabou há quase dez anos). Bem aquinhoado nos
três quesitos, o Brasil é um dos alvos
preferenciais desses levantamentos.
Raramente examinada, a qualidade
metodológica dos diferentes estudos
varia de um caso para outro. Os pesquisadores são muitas vezes gente politizada, que romantiza a luta contra a
injustiça em países remotos, quando
não ocorre de serem meras pontas-de-lança de grandes empreendimentos comerciais. Tudo isso em alguma medida é verdade.
Mesmo assim, o efeito prático da divulgação das estatísticas é muito positivo. Há um choque na opinião pública, as autoridades procuram se mexer
para preservar a impressão de que estão fazendo alguma coisa. Cresce, de
qualquer forma, a consciência dos
problemas que o hábito impede cada
um de nós, ao contrário do estrangeiro, de ver.
O risco é que essa mentalidade reforce o mito de que existe um maniqueísmo entre Primeiro e Terceiro
Mundo, entre eles (os heróis) e nós
(os vilões). Desse ângulo, os países ricos seriam o paraíso dos direitos, das
oportunidades iguais e da vitória do
mérito, em oposição à lei da selva dos
países pobres. Isso é verdade, mas não
é toda a verdade.
Os países ricos reduziram a injustiça, o privilégio e o preconceito não
porque foram acometidos de uma
consciência moral superior, mas porque esses problemas eram obstáculos
à mercantilização da sociedade como
um todo. A igualdade decorre também do efeito uniformizador do dinheiro, conforme ele passa a mediar
todas as relações.
Nos países pobres, ao contrário, regiões imensas da vida social ainda não
foram incorporadas à lógica da mercadoria. Fora do campo estritamente
econômico (e às vezes até dentro dele), nos domínios da vida familiar e
pessoal, da religião, do prazer etc.,
não existem as regras de equivalência
baseadas na impessoalidade dos direitos.
O resultado é que nessas regiões selvagens campeia tanto a violência
quanto a sensualidade, tanto a desordem e o mandonismo quanto a liberdade pessoal. O sonho de todos os
profetas reformadores do Brasil moderno, de Oswald de Andrade a Glauber Rocha ou Caetano Veloso, foi
conciliar os valores das duas civilizações.
Não era outra a Roma tropical de
Darcy Ribeiro, uma sociedade que retivesse a espontaneidade do "primitivo" sem abrir mão de conquistar a
cultura de direitos do Primeiro Mundo. São outros quinhentos acreditar
que essa utopia ainda seja realizável
-se é que o foi alguma vez-, dado o
grau avançado de mercantilização que
já atingimos.
Céticos ou crédulos, não sejamos ingênuos. A instalação de uma cultura
de direitos (o que sempre coincidiu,
até agora, com o império da mercadoria) corrige defeitos ao mesmo tempo
em que destrói qualidades. Nossa biodiversidade existencial é a primeira vítima nesse processo em curso, com
tudo o que ela tem de ruim e de bom.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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