São Paulo, terça-feira, 19 de abril de 2011

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VLADIMIR SAFATLE

Brasília

Em dois dias, Brasília completará 51 anos. Mas ela continua sendo um corpo estranho no interior do Brasil.
Talvez nenhuma outra capital no mundo seja tão incompreendida por seu próprio povo. Muito desta incompreensão diz respeito à "ideia" de Brasília: a crença modernista na força formadora da ideia.
A natureza modernista da ideia de Brasília encontra-se, principalmente, em seu desejo inicial de reconfiguração do que poderíamos chamar de "gramática urbana". Toda verdadeira ideia é sempre um movimento de reconstrução destes dados elementares que pareciam, até então, absolutamente naturais e que, no caso de uma cidade, compõem a gramática dos modos de ocupação do espaço.
Brasília foi, desde o início, um modo diferente de ocupar o espaço. Não por outra razão, seu desenho urbano fora inspirado no gesto mais elementar de tomar posse, ao abrir os braços diante do vazio.
Desta forma, seu projeto tinha a força de suspender dicotomias que, até hoje, destroem nossas cidades. A diferença entre espaço público e espaço privado (no projeto inicial, os elevadores abriam-se diretamente para o espaço público), entre espaço vazio e espaço pleno (nada em Brasília é tão pleno que não possa ser atravessado pela abertura do vazio), entre vegetação original e intervenção humana.
Tudo parecia procurar uma nova configuração em uma cidade, graças ao gênio de Lucio Costa, que foi capaz de aliar alta circulação em suas artérias e lentidão silenciosa em torno de suas habitações.
Esta força da ideia de Brasília trazia, principalmente, a promessa de construir seu próprio tempo. Em um cerrado onde a natureza parece, a todo momento, querer voltar ao nada, onde as árvores tortuosas parecem querer voltar ao chão, Brasília era a afirmação de que toda verdadeira criação alimenta-se de um impulso "ex nihilo", que vem do nada, impondo um corte que nos faz ver, de uma forma bem diversa, o passado e o futuro.
Mas costuma-se dizer que o tempo de Brasília não se realizou, que ela ficou velha. Suas utopias de igualdade social não se realizaram, mesmo sua arquitetura foi ferida pelo lixo neoclássico produzido pela especulação imobiliária com seus delírios de ostentação.
Porém podemos dizer também outra coisa. Uma ideia, quando encontra seu tempo, guarda-o, mesmo que ele não se realize. Este tempo fica em latência, como um corpo estranho a assombrar o presente. Como uma promessa que mostra um desejo de ruptura que, às vezes, consegue alcançar a superfície e cortar o contínuo da história.
Este desejo é a marca maior de uma outra história do nosso país. Uma história que passa por Brasília.
VLADIMIR SAFATLE escreve às terças-feiras nesta coluna.


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