São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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Vamos "pentar" positivo


Vou viajar para assistir à Copa. Ficarei longe das pesquisas, dos julgamentos do Supremo, da dívida interna, de Serra e de Lula
Às vezes há momentos na vida da gente de enorme intoxicação com os fatos cotidianos. Perde-se a paciência com tudo e com todos. O mais triste é quando se vão a humildade e o gosto de perdoar. Os outros passam a ser desafortunados de inteligência. Passa a ser inútil o antigo e salutar debate.
Fernando Henrique indica o jurista Gilmar Mendes para o Supremo Tribunal Federal e advogados, juízes, procuradores instauram uma enorme discussão em torno disso, divididos, a favor e contra. Acusam o indicado de ter sido ferrenho defensor do governo. Mas, se era advogado do governo, deveria trair o cliente?
No julgamento da Adin da Consif, o ministro Carlos Velloso disse que o art. 192, da Constituição, se aplica somente a juros. O resto do sistema financeiro que se dane. Tem gosto de tango argentino, cantado pelo outro Carlos, o Gardel, que não era mineiro, mas francês e se chamava Charles Gardes.
A Ferrari manda o Barrichello diminuir a marcha para o Shumacher ganhar a corrida; e o Rubinho, com grande esforço, perde a corrida em obediência a uma cláusula contratual. O mundo se espanta com a marmelada. Mas nada acontece. No máximo um mal-estar nas casas de apostas, que possivelmente abrirão processos judiciais para indenização contra a fraude, pois tiveram que pagar as apostas no vencedor, em maior número. Cumpriu-se o contrato, ato jurídico perfeito!
Sem que uma coisa nada tenha a ver com a outra, o senador José Serra tem que suportar acusações contra seu antigo arrecadador de fundos de campanha, que teria pedido propina no caso da Vale do Rio Doce e que de nada valeu, porque Benjamin Steinbruch, a quem a propina teria sido pedida, se recusou a pagar e passou a correr o risco de ser envolvido em inquérito porque não pagou. Quem reclamou? Próceres do PSDB. Coisa estranha.
Ainda me lembro de José Serra, mocinho, estudante, visitando-me no grupo Simonsen, de quem eu, também mocinho, era advogado, para pedir passagens da Panair do Brasil a fim de viajar pelo país e fazer campanha contra a ditadura militar. Consegui as passagens e, pelo jeito, ele realmente fez a campanha, porque acabou exilado no Chile.
E a Panair do Brasil foi fechada, saqueada, violentada pela ditadura, sem direito à anistia, por ser pessoa jurídica. Depois, muitos anos depois, ganhou o processo no Supremo Tribunal. De nada valeu, até agora, além de música do Milton Nascimento. Nem José Serra fala mais na Panair, que não voa e não rende votos. Prefere discutir as reivindicações dos garimpeiros da Serra Pelada.
Temos, ainda, de suportar algumas instituições financeiras rebaixando o crédito do Brasil em razão de pesquisas eleitorais, que apontam Lula como vencedor das próximas eleições. Algumas delas são as mesmas que disseram ser bom negócio o investimento na Enron, empresa norte-americana que faliu.
Armínio Fraga, do Banco Central, do alto de sua indiscutível competência e seriedade, critica os candidatos a presidente por não serem claros nos programas de seus eventuais governos. De fato, nenhum deles explica como pagará a dívida interna que o atual governo elevou de R$ 60 bilhões para R$ 700 bilhões. Confiam no ministro Carlos Velloso, do STF, para resolver esse imenso problema do sistema financeiro, que banca a dívida, aplicando o Código de Defesa do Consumidor em relações bancárias, menos juros. Solução semelhante, na Argentina, teve um nome: Cavallo -e acabou no "corralito".
Mas, por enquanto, o abalo do sistema é culpa do sucesso, nas pesquisas, de Lula, que ainda precisa do segundo turno, seu grande problema. Quando Lula diz lutar por "menas miséria", todos concordamos, salvo com a concordância. Mas o mercado teme que ele confunda "bond" com bonde.
Se o PT houvesse lançado um Aloizio Mercadante, um Tarso Genro ou até um José Dirceu, já estaria vencendo no primeiro turno e somente correria o risco de perder para um Pedro Malan, pela credibilidade e sensatez que transmite, e que, por isso mesmo, não se filiou a partido nenhum. E banco nenhum, mesmo com a vitória do PT, estaria rebaixando o crédito do Brasil por pura, ou impura, especulação. O problema de Lula é a escolaridade, aquela que Collor tinha de sobra. O povo tem medo de que, eleito presidente, passe a assinar papel sem entender o que está assinando, dispensando o concurso de um PC Farias.
Por último, a seleção já embarcou para a Copa do Mundo, sem Romário, também sob discussão absolutamente inútil, porque o rapaz esta com 36 anos de idade e não pode mais enfrentar zagueirões jovens e parrudos nem se deslocar para fugir deles.
Também eu vou viajar para assistir à Copa e torcer pelo penta. Ficarei longe das pesquisas eleitorais, dos julgamentos do Supremo Tribunal, da dívida interna, de Serra e de Lula. Tenho, porém, receio do tango argentino, não apenas pela ameaça de tanga no nosso sistema financeiro, como e sobretudo pelo futebol, lembrando-me, mais uma vez, que Gardel nasceu em Toulouse, na França, outra pedra no nosso caminho.
Mas, tanto para um como para o outro Brasil, temos que "pentar" positivo.


José Saulo Pereira Ramos, 72, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).


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