São Paulo, Sábado, 19 de Junho de 1999
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O sistema de metas de inflação é hoje o mais adequado à economia brasileira?

SIM
A estabilidade como objetivo

JOSÉ JÚLIO SENNA

As metas de inflação são um tema destacado na literatura corrente. A análise teórica insere-se numa velha discussão sobre a forma mais apropriada de conduzir a política monetária: "regras versus poder discricionário". De um lado, estão os economistas monetaristas; de outro, os chamados ativistas. Para os primeiros, o conhecimento acerca do estado da economia e da maneira pela qual a política monetária afeta a inflação é sempre imperfeito. Assim, o melhor seria evitar a manipulação dos instrumentos, mantendo constante a variação do estoque de moeda. Qualquer coisa diferente disso tenderia a exacerbar os ciclos da economia. Os ativistas privilegiam as tentativas de estabilização mediante o uso frequente dos instrumentos disponíveis.
De certa forma, as metas de inflação são uma opção intermediária. Elas abrem espaço para o sacrifício das metas de crescimento de preços, no curto prazo, sempre que o desemprego se mostre excessivo (como resultado de um choque, por exemplo). Nesse caso, procura-se calibrar a política monetária para amenizar o quadro recessivo, sem prejuízo do compromisso com a estabilidade de preços num prazo mais longo. Na prática, isso significa adiar (por prazo definido) o compromisso com determinada meta de inflação. Busca-se combinar a disciplina e a credibilidade do ideal monetarista com algum espaço para a política "ativista".
Há ampla evidência de que o sistema de preços funciona melhor com algum tipo de âncora. A expansão monetária e a taxa cambial têm cumprido esse papel em vários países. O problema é que, universalmente, é difícil manter o ritmo de expansão da moeda dentro de certos limites, e isso tem levado ao gradual abandono dessa política. Quanto à âncora cambial, é notório que só funciona durante pouco tempo. O "inflation targeting" surgiu como opção a esses dois modelos tradicionais.
A adoção do novo regime em vários países nos anos 90 reflete o crescente consenso de que a estabilidade de preços deve ser o objetivo básico da política monetária. Sua grande vantagem é direcionar o foco dos dirigentes dos bancos centrais para aquilo que o controle da moeda pode fazer de melhor. Naturalmente, países distintos adotaram-no por motivos diferentes. Em alguns, como Inglaterra e Suécia, a motivação básica esteve ligada ao abandono forçado da âncora cambial. Nesses casos, a adoção do câmbio flexível exigia algum mecanismo que sinalizasse o compromisso com a preservação de baixas taxas de inflação. A discussão no Brasil, por certo, é da mesma natureza.
Em todos os países onde foi adotado, esse regime surgiu para consolidar ganhos previamente obtidos no combate à inflação. A estratégia não se mostra adequada contra processos agudos ou casos crônicos de inflação. No fundo, ela não pode ser vista como um substituto para o emprego dos instrumentos antiinflacionários clássicos; justamente por isso, os custos de uma eventual "desinflação" não desaparecem com o uso de "inflation targeting".
De qualquer forma, é impossível negar que a experiência mundial tem sido favorável: não há país que tenha abandonado o regime ou se mostre insatisfeito. É certo, porém, que se trata de uma experiência recente, ficando sempre a dúvida acerca de como funcionaria caso a economia mundial experimentasse um crescimento econômico mais acelerado do que o dos anos 90.
Entre nós, o quadro vigente parece apropriado à implantação do regime. A situação de desemprego é lamentável (e precisa ser corrigida), mas isso ajuda a conter as pressões inflacionárias, inclusive as decorrentes da mudança cambial. O esforço maior contra a inflação já aconteceu. A transparência que caracteriza o "inflation targeting" pode ser muito útil para ajudar a consolidar a mentalidade da estabilidade de preços. Os representantes do meio político que não estiverem de acordo terão de explicitar suas justificativas. O BC definirá sua política deixando transparecer a função de reação aos eventos econômicos mais importantes. No limite, quando o regime estiver consolidado (e se der certo), as ações das autoridades monetárias não trarão surpresas.
Ao longo do tempo, é importante que as metas em si sejam estabelecidas pelo governo como um todo, e não ditadas apenas pelo Ministério da Fazenda. Os eleitos pelo povo devem definir os grandes objetivos (e se comprometer com eles), cabendo ao BC apenas cumprir o que for traçado. Enganam-se os que fazem a crítica da falta de independência. A independência necessária é a referente ao uso dos instrumentos monetários -e essa não tem faltado.
Vale ressaltar que, embora o regime pareça adequado às circunstâncias atuais, tem suas limitações, como qualquer outro. É uma estratégia segundo a qual as decisões são tomadas "olhando para a frente", ou seja, tentando prever os impactos sobre a inflação futura decorrentes do comportamento de um largo número de variáveis. E isso envolve o uso de modelos econométricos sofisticados, de difícil definição em economias instáveis como a nossa. Além disso, o tão discutido déficit público precisa ter um comportamento compatível com as metas de inflação. Por isso, recomenda-se o envolvimento do governo como um todo no estabelecimento dos compromissos.


José Júlio Senna, 53, doutor em economia pela Universidade Johns Hopkins (EUA), é sócio-diretor da MCM Consultores Associados. Foi diretor do Banco Central.



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