São Paulo, segunda-feira, 19 de julho de 2004

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ROGÉRIO GENTILE

Cem anos de gratidão

Delúbio Soares de Castro, o tesoureiro do PT, é um sujeito curioso. Fã de Gabriel García Márquez e de charutos caros, costuma contar com orgulho que ficou 20 anos sem tomar Coca-Cola em protesto contra o imperialismo ianque.
Amadurecido na militância petista e amigo íntimo de Luiz Inácio e Zé Dirceu, Delúbio tem hoje uma outra obsessão na vida: coletar donativos de empresários abnegados, dispostos a auxiliar o Partido dos Trabalhadores e o companheiro-mor a mudar o país.
Pouco importa se, por uma dessas coincidências, o benemérito detenha contratos oficiais ou esteja enamorado de alguma concorrência pública.
O fundamental é que, para mudar o país, o partido precisa de uma nova sede na cidade de São Paulo, de preferência na região dos Jardins. A atual, no centro, ficou muito pequena depois que o PT desembarcou no Palácio do Planalto e engordou, amigado de tanta gente singular.
No seu itinerário de mármore, Delúbio Soares não pretende pedir muito, considerando o que o PT se propõe a fazer pelo futuro da nação. Algo entre R$ 5.000 e R$ 500 mil (o primeiro valor é suficiente para a concessão de cem bolsas-família, nova roupagem do programa Fome Zero, aquele da campanha presidencial de Lula).
Em troca, pela compreensão com o partido e pela disposição em ajudar o Brasil, o empresário solícito receberá do tesoureiro um kit oficial do PT, o chamado "kit gratidão" - afinal, amizade é tudo na vida.
Mas fica no ar a pergunta: o que diria anteontem a República da Companheirada se essa sacolinha fosse conduzida, digamos, pelo funesto PC Farias? Ou, num plano menos distante, pelo finado Sérgio Motta em nome da fantasia tucana dos 20 anos de poder?
Bobagem. Delúbio Soares é um bom homem, filho de pais analfabetos e vítima de discriminação social em sua Buriti Alegre, no interior de Goiás, onde, nos anos 60, certos lugares do cinema da cidade eram reservados aos filhos da elite. Seu passado realmente o isenta de qualquer tipo de suspeita, não é mesmo, Luiz Inácio?
O problema no Partido dos Trabalhadores atualmente é que ninguém fica mais vermelho. Ninguém tem medo de fazer papel ridículo.
O presidente da República manda comprar um Airbus de US$ 56,7 milhões, embora faltem recursos para a manutenção de muitos programas sociais prioritários, como o Brasil Alfabetizado. Uma piada.
O filho e um velho amigo do chefe da Casa Civil conseguem liberar emendas parlamentares para projetos que lhes interessam, sendo que deputado nenhum apresentou, de fato, emenda para tais fins. Um detalhe.
Sem contar as inúmeras contradições entre o discurso pré-Planalto e o mundo real dos gabinetes refrigerados. Antonio Palocci, quem diria, já empurrou carrinho de supermercado pela praça dos Três Poderes para mostrar ao Brasil que o salário mínimo não dava para nada.
Como escreveu Dostoiévski em "O Eterno Marido", "a pessoa bebe a própria tristeza e como que se embriaga com ela". O PT bebeu o próprio poder e se embriagou com ele.


Rogério Gentile é editor-adjunto de Brasil.


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