São Paulo, sexta-feira, 19 de setembro de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Holocausto judeu ou alemão?
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.
Nesse sentido, a marca distintiva da verdade histórica é a verdade fatual, que pode ser interpretada, mas não pode ser negada, sob pena de falsidade deliberada. Isso, para o historiador, é um limite científico (que dele exige pesquisa fundamentada) e ético (que o impede de mentir). A defesa do autor do livro pretendia que este tratava do revisionismo histórico, no campo de um debate intelectual, e, no tocante à questão judaica, do combate ao sionismo (mas não ao povo judeu e sua religião). Dizer, no entanto, que isso é prática de quem professa uma ideologia interpretativa, mas não de racismo, é afirmação que não se apercebe da diferença entre ciência e retórica. Para a ciência, que respeita a verdade fatual, pode-se, legitimamente, arguir imparcialidade e, por consequência, neutralidade. Já, para a retórica, conta o dito popular "o que vale não é o fato, mas a versão do fato". Quem assim "pesquisa" e interpreta sujeita-se, porém, à perversão discriminatória e até a efeito racista de suas conclusões. Nesses termos, é até possível sustentar a opinião de que o povo da Alemanha nazista, ao final da guerra, tenha sofrido intensamente uma represália desnecessária, pois já estavam impotentes. Mas não dá para ocultar, como fazem muitos revisionistas, que a propaganda nazista, até o último momento, sustentou que não haveria rendição em hipótese nenhuma. Contudo dizer que quem sofreu o sistemático processo de dizimação humana foi o povo alemão, e não a massa de milhões de judeus, de 240 mil ciganos, de homossexuais, de deficientes físicos e mentais, de operários comunistas, de opositores religiosos, é transformar o Holocausto em versão "legítima" da história. Mas dizer que essa versão é exercício científico, destituído da intenção de entorpecer a razão e de preconceito racial, é entrar no próprio jogo do nazismo. Pode-se pesquisar em vão nos anais dos diários oficiais da época ordens do Führer sobre o holocausto. Em contraposição, havia leis de fachada, mas os verdadeiros decretos que continham a vontade do Führer em relação ao genocídio eram secretos. Assim, enquanto Hans Frank, governador oficial da Polônia indicado pelo partido, discutia em 1941 a possibilidade de se livrar dos judeus dos territórios sob seu comando, os SS já estavam assassinando sistematicamente os judeus que lá viviam. Já no final da guerra, quando o ideólogo do partido Rosenberg discursava abertamente acerca do restabelecimento de alguns estados da Europa Oriental que haviam desaparecido sob o jugo nazista, Himmler e sua polícia secreta estavam tramando uma segunda fase do Holocausto para abranger toda a população eslava remanescente. O Estado tinha uma fachada para fins externos, mas o núcleo do poder era a polícia secreta. Em se tratando de pesquisa histórica séria acerca do Holocausto, há ainda muito campo para o debate intelectual, como ocorre na República Federal da Alemanha, desde a década de 70, por exemplo, nos trabalhos de historiadores como Martin Broszat e Hans Mommsen, em que são apresentadas diferentes interpretações do holocausto. Mas isso não leva nenhum deles a negar o fato do extermínio dos judeus, ciganos, homossexuais etc. Enfim, quem faz ciência sujeita-se ao julgamento da verdade e do erro. Mas quem faz retórica não pode eximir-se da responsabilidade por suas intenções e mesmo das consequências até criminosas de suas opiniões. De outro modo não existiria a calúnia, a injúria e a difamação. Ou, como já havia sentenciado na Alemanha sua Suprema Corte (caso Auschwitzlüge, 1994), dizer que "no Terceiro Reich não teria havido a perseguição aos judeus é uma afirmação fática que, segundo incontáveis relatos de testemunhas oculares, confirmações em inúmeros juízos criminais e o conhecimento da ciência histórica, é comprovadamente falsa. Em si, uma afirmação com esse conteúdo não goza, portanto, da proteção à liberdade de opinião". Em consequência, a corte alemã condena afirmações "históricas" desse gênero, por serem uma séria infração constitucional que conecta a negação, no Terceiro Reich, do extermínio judaico por motivos racistas com uma agressão à dignidade do sobrevivente povo judeu. Não foi outro o teor da importante decisão da Suprema Corte brasileira ao ponderar, afinal, sobre os limites da liberdade de opinião. Tercio Sampaio Ferraz Júnior, 62, advogado, é professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. Foi procurador-geral da Fazenda Nacional (governos Collor e Itamar). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Gabriel Chalita: Por uma educação poética Índice |
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