São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O mar e o peixe

RIO DE JANEIRO - Na crônica de ontem, comentei que um político escolado, em momentos de crise, não pensa, não fala nem ouve. Pode parecer exagero, mas é assim mesmo. Lembro o caso de Benedito Valadares, que era considerado uma calamidade intelectual, mas foi um político de sucesso, sempre por cima de qualquer furacão da vida pública nacional.
Numa crise das brabas, que foram muitas no seu tempo, um deputado perguntou a ele, que era então presidente do maior partido da época, o que dizia da situação. Benedito respondeu que não dizia nada. E acrescentou: "Nem ouço!".
Outro que se tornou famoso pela habilidade em enfrentar crises foi José Maria Alkimin, que cultivava uma surdez estratégica. Só ouvia o que era neutro, inócuo. Quando o diálogo ficava mais sério, ele botava a mão no ouvido, fazendo uma concha que constrangia quem falava com ele, obrigando o interlocutor a falar mais alto. Fazendo-se de surdo, perguntava interessado: "O quê? Como? Quem? Por quê?".
Evidente que o sujeito mudava de tema. A política exige o ciciar nas confidências, o murmúrio dos comentários, das revelações e suspeitas. Falando alto, ninguém faz política, faz discurso para a platéia ou para a imprensa.
Nos tempos em que era editor de um jornal aqui no Rio, numa crise antes da queda do presidente João Goulart, recebemos na redação a visita de um senador importante, que estava no bojo da confusão. Numa sala especial, ele conversou com os editorialistas, pegou um papel e fez um gráfico da situação arrolando generais contra ou a favor do governo. Quando terminou, rasgou o papel e jogou os pedaços numa cesta.
Levamos o senador até a portaria, nos despedimos cordialmente e voltamos a fechar a edição do dia seguinte. Dois minutos depois, Sua Excelência estava de volta. Entrou na sala especial, pegou a cesta e catou os pedacinhos do papel que rasgara. Fez uma bolinha com eles e botou-a no bolso. Como ficamos admirados, ele se explicou com poucas palavras:
- O mar não está para peixe!


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