São Paulo, quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O renascimento da agenda agrária

JOSÉ GRAZIANO DA SILVA

Os participantes da próxima conferência da FAO serão responsáveis por redefinir o papel da reforma agrária no novo momento da região

A 30ª CONFERÊNCIA Regional da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), que reunirá 33 países em Brasília, de 14 a 18 de abril, carrega o ambicioso compromisso de consolidar um novo consenso em torno do desenvolvimento rural da América Latina e do Caribe. Entre outros assuntos, seus painéis vão discutir as interseções entre os setores público e privado para acelerar o fomento rural; os riscos e as oportunidades da agroenergia; o combate à fome; o manejo sustentável da pecuária e as cruciais salvaguardas contra doenças transfronteiriças. Mas, sem dúvida, uma das maiores responsabilidades dos seus participantes será reposicionar o papel da reforma agrária no novo momento da história regional.
Algo que não se via desde a década de 1970 ocorreu na América Latina entre 2003 e 2007: a economia regional cresceu em média quase 5%. Foram anos de expansão que fizeram disparar uma espiral benigna em diferentes indicadores sociais. Seria ingênuo, porém, considerar que o terreno foi definitivamente aplainado para um ciclo sustentado de crescimento, sem enxergar aí certas linhas de continuidade que o tempo não apagou. A pobreza e a fome articulam esse fio condutor feito de desequilíbrios que unificam o passado e o presente e asseguram à região uma vaga incômoda nos almanaques de avaliação econômica e social. A América Latina é a região mais desigual da Terra e a segunda mais violenta do planeta.
A Cepal estima em 71 milhões o número de indigentes na América Latina. Dentre eles, a FAO aponta para mais de 52 milhões de pessoas encurraladas numa rotina de fome e insegurança alimentar. Populações indígenas -a exemplo dos negros no Brasil- são o principal estuário da desigualdade. Demograficamente dominantes em diversas economias e fortemente associadas à terra na maioria delas, as comunidades nativas têm frágeis laços com a cidadania e com o crescimento. E um padrão de renda entre 45% e 60% inferior à média.
No apogeu da agenda reformista, nos anos 50 e 60, o que se preconizava era garantir o abastecimento alimentar, expandir o mercado interno, redistribuir a riqueza e romper as amarras do poder oligárquico, abrindo espaços econômicos e institucionais para uma industrialização com desenvolvimento soberano. O que parece distinguir a atual equação do desenvolvimento é que, aos desequilíbrios do passado -para os quais a urbanização selvagem e sua contrapartida agrícola não ofereceram respostas adequadas-, vieram adicionar-se novas demandas. De certa forma, elas deslocam a questão agrária para um outro patamar de audiência pública.
E isso muda tudo.
A preservação do meio ambiente, a produção da energia renovável, o manejo sustentável de reservas naturais, a demanda por comida saudável e a ocupação planejada do território não são temas que aglutinem apenas os sem-terra, os indígenas, os camponeses ou os agricultores familiares, que formam um terço da população latino-americana. Seria frívolo, ademais, considerá-los apenas um modismo das elites. A verdade é que a maciça geração de capacidade produtiva no século 20 -e sua contrapartida predatória e poluente- reaproximou por linhas tortas aquilo que nunca esteve separado: a história humana e a história natural, o rural e o urbano. O saldo dessa reconciliação se traduz na busca de ferramentas para redimir o passado e reinventar o futuro.
A elaboração de uma nova agenda agrária é uma delas. O desafio da próxima Conferência Regional da FAO é conferir em que medida a reforma agrária tem respostas a adicionar às demandas revigoradas da sociedade.
Trata-se de avançar num debate retomado em 2006, em Porto Alegre, quando a FAO, com o apoio do governo brasileiro, realizou a Conferência Internacional de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural, 27 anos depois da Conferência Mundial de Roma sobre o tema.
Não se trata mais de analisar um instrumento residual de luta contra a pobreza, mas sim de um trunfo precioso num horizonte histórico em acelerado processo de mutação de paradigmas econômicos e valores culturais. O desenvolvimento só poderá ser chamado assim no século 21 se combinar a velha racionalidade econômica com a harmonia social e o equilíbrio ambiental. Trata-se de elevar a taxa de eficiência e o grau de igualdade e ao mesmo tempo obter maior equilíbrio nas relações entre a natureza e civilização, a cidade e o campo. A Conferência Regional da FAO pode dar uma contribuição importante para ampliar esse horizonte ao repor o debate sobre novos modelos de desenvolvimento agrário para o nosso tempo e o nosso continente.


JOSÉ GRAZIANO DA SILVA, 58, é representante regional da FAO para América Latina e Caribe. Foi ministro de Segurança Alimentar e Combate à Fome (2003-04).

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