São Paulo, Sábado, 20 de Fevereiro de 1999
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O Congresso deve fixar regras mais rígidas de fidelidade partidária?

NÃO
Excrescência da ditadura

ALBERTO ROLLO

A defesa do retorno da fidelidade partidária, pregado por muitos como solução dos problemas políticos que assolam o país, mostra um desconhecimento da história recente do Brasil e das coisas jurídico-eleitorais.
Em 1984, quando havia a figura do Colégio Eleitoral para a eleição do presidente da República, atacou-se duramente a fidelidade partidária, que impossibilitava parlamentares de votar em outro candidato que não o do próprio partido. Todos os parlamentares do partido majoritário de então, o PDS, estavam obrigados a votar contra Tancredo Neves, candidato da oposição no Colégio Eleitoral. O PDS recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral, buscando o registro de uma diretriz política interna para, com base nisso, exigir fidelidade de seus parlamentares ao voto em Paulo Maluf, candidato da situação.
O TSE e o Supremo Tribunal Federal, este por provocação do então deputado Herbert Levy, acabaram por inviabilizar resolução que o senador Moacyr Dalla baixara para impingir a fidelidade partidária no Colégio Eleitoral. Se tivesse sido mantida essa fidelidade, outro teria sido o rumo da história.
Mais adiante, em maio de 1985, tentaram amordaçar a consciência do deputado Jorge Cury. O resultado foi um processo no qual o hoje ministro Sepúlveda Pertence, então procurador-geral da República, opinou contra o voto de liderança, que jungia todos os parlamentares de um partido à decisão do líder. Pertence afirmou que, mesmo no exame do direito comparado, não encontrava figura como a do nosso voto de liderança, ressaltando que, na França, o voto por procuração e o voto coletivo haviam sido abolidos. E tachou de inconstitucional tal tipo de voto, num parecer que veio a prevalecer.
No Brasil de hoje, teremos de fazer uma opção entre a fidelidade partidária gramática e a programática. A Carta de 1988 já obrigou os partidos políticos a inserir nos seus estatutos disposições relativas à fidelidade partidária, no que foi repetida pela lei federal 9.096/95 (dos partidos políticos). Parlamentares foram expulsos de suas agremiações, como no PDT e no PPB, sem, entretanto, perderem seus mandatos.
Mas não é a fidelidade partidária meramente gramática que vem sendo pretendida pelos seus defensores. O que se quer é a fidelidade programática, em que algumas cabeças coroadas de um vasto partido político, a serviço dos interesses momentâneos dos donos do poder, baixam resoluções que vinculam os votos de toda uma bancada na direção desejada, sob pena de perda de mandato. Os dirigentes partidários que elaboram estatutos são os mesmos que os interpretam, como fruto da excessiva autonomia partidária e de acordo com os interesses do momento.
Se ainda agora existisse a perda do mandato como possível consequência de ato de infidelidade partidária -esse, sim, o cerne da questão-, talvez Collor tivesse alcançado o final do seu mandato, sucedendo Maluf na Presidência; a esta altura, poderia estar extinta toda possibilidade de aposentadoria antes prevista na Carta, por ampliação do conceito de quem venham a ser os "vagabundos" que recebem benefícios (só para citar um exemplo).
Quanto aos deputados que mudam de legenda durante o mandato, eles só o fazem, na maioria das vezes, para robustecer os grandes partidos e suas bancadas, com vistas à conquista de mais postos em mesas ou comissões. Esse é um problema que se resolve com solução simples, a mesma já adotada quanto à distribuição do horário gratuito. É só contar as bancadas e atribuir-lhes direitos pelo número de deputados eleitos, não pelo existente na ocasião dessas escolhas.
O garroteamento das consciências parlamentares, por conta dessa ditadura partidária, far-nos-á retornar aos tempos do autoritarismo militar. A quem interessa a camisa-de-força da fidelidade programática, punindo a respectiva infração com a perda do mandato? Essa perda é defendida por muitos que desconhecem fatos da história política recente do país e terminam por fazer o jogo das elites partidárias.
Não há regras de fidelidade partidária em países como França, Alemanha e EUA. No fim do ano passado, no episódio Monica Lewinsky, os democratas votaram a favor da abertura de investigações contra seu presidente. Quem fiscaliza a observância da fidelidade partidária nesses países são os eleitores.
Aqui, dissemina-se a mania de tutelar a vontade dos eleitores pela Justiça Eleitoral (que se revelou nas últimas eleições, em alguns Estados, intervencionista como nunca antes, chegando a suspender transmissões de emissoras de rádio e TV sob o propósito de determinar ao eleitor o que ele poderia ver e ouvir). Aqui, propaga-se o desejo de cassar mandatos eletivos por via parlamentar e, pior, por via partidária, numa tentativa de substituir o verdadeiro dono do poder, que é o povo.
Para a melhor legitimidade do processo eleitoral, será suficiente adotarmos o voto distrital -ainda que misto- ou medidas prosaicas como o recadastramento dos eleitores, com um novo título eleitoral do qual conste sua fotografia. Ou, como nos EUA, submeter os grandes temas ao controle popular, no mesmo dia das eleições.
O retorno a uma fidelidade partidária já experimentada e rejeitada transformará os partidos não em um canal por onde flui a seiva da democracia, mas em um instrumento para a satisfação de apetites de poder.


Alberto Rollo, 53, advogado, é especialista em direito eleitoral e presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil/SP.



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