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TENDÊNCIAS/DEBATES
O filme "A Paixão de Cristo" tem conteúdo anti-semita?
NÃO
A paixão segundo o "Evangibson de Mel"
AFONSO MARIA LIGORIO SOARES
Escrevo ainda aturdido com o
impacto da versão gibsoniana do
maior mito ocidental: o flagelo da vítima inocente. Nessas condições, só posso responder negativamente à questão
que me foi proposta (mas respeito a
preocupação de personalidades como
os rabinos Henry Sobel e Nilton Bonder, pois seguem a sabedoria milenar do
"onde há fumaça...").
Passei a maior parte do tempo me
desviando dos jorros de sangue, sobressaltado com a extrema crueldade, relatada na tela com apurado naturalismo.
O único alento foi ver nosso herói vencer a todos ao ressuscitar. Se houve alguma intenção anti-semita no roteiro e
na direção, ela simplesmente se perde
naquilo que, para mim, é o real fio condutor da película: jogar-nos no rosto,
com crueza e pitadas de terror, o tamanho da dor suportada pelo filho de Deus
para redimir nossos pecados.
Mas de onde pode ter surgido, então, a
acusação de anti-semitismo? Talvez isso
se deva a uma engenhosa estratégia. Segundo consta, enquanto sua obra ainda
era alvo das chacotas de colegas, o diretor apareceu num programa popular de
TV para desmentir os boatos de que a
obra fosse anti-semita. Não deu outra: a
mídia mordeu a isca e foi conferir. Se essa anedota for mesmo verídica, Mel é
um hábil marqueteiro. Também convém considerar a alegada infidelidade
do filme aos fatos reais. Algumas lideranças judaicas reclamam que Gibson
só fez reavivar alguns equívocos históricos que, no passado, legitimaram insanas perseguições ao povo judeu. A estupidez de alguns que se diziam cristãos
chegou ao ponto do "esquecimento" de
que não só alguns inimigos, como também os amigos, familiares e o próprio
Jesus eram judeus!
Ora, não há como negar: o "Evangibson de Mel" está pontilhado de erros e
incongruências perceptíveis a qualquer
estudante de teologia mais atento. Nem
me darei o trabalho de citá-los, pois isso
já foi feito à exaustão, com o apoio de
grandes especialistas. Entretanto reconheço que nenhum cineasta, por mais
cuidadoso, conseguiria contentar todos
os entendidos nesse quesito. Aliás, por
que o faria? Cinema é cinema.
O que de fato me incomoda nessa Paixão é algo bem mais perigoso para todos nós, judeus e cristãos, crentes ou
ateus: a insistência do diretor na observância literal dos evangelhos e a restrição do enredo às últimas horas de Jesus.
Não julgo seu mérito artístico, mas já
que Gibson também incluiu no marketing do filme sua opção católica e intenção missionária, é preciso salientar o
viés fundamentalista dessa abordagem,
que, como todo fundamentalismo, é
sempre uma distorção: a pretensão de
seguimento estrito do texto sagrado
nunca deixa de ser uma seleção e interpretação (interessada) desse texto. Portanto o nó da questão não estaria no
presumido anti-semitismo que busca
confirmar na Bíblia suas teses racistas,
mas numa leitura acrítica da mesma.
Acrítica, mas não inócua. Embora haja no filme passagens ternas -o jovem
Jesus que brinca com a mãe, o encontro
de Maria com a mulher de Pilatos-,
frases famosas, como o "amai vossos
inimigos", e bons achados -a figura do
tentador que acompanha Jesus até seu
último suspiro, a eucaristia que se cumpre na última ceia e no alto da cruz-, o
que fica mesmo é a brutalidade dos golpes e a longa sessão de tortura a que é
submetido o profeta galileu.
A teologia subjacente a tais imagens e
que o diretor deve mais à vidente Anna
Emmerich do que aos evangelhos parece dizer que grande foi nossa salvação
porque enorme foi o flagelo do nazareno. A quantidade de sangue derramado
ratifica nossa redenção. O Cristo de
Gibson não tem outra saída para consumar sua missão, senão sofrer. E sofrer
numa intensidade insuperável! Não erraria muito quem nele vislumbrasse o
filho masoquista de um pai sádico.
Essa concepção, para dizê-lo de uma
vez, não é evangélica nem cristã. A mais
antiga tradição sempre afirmou que é o
amor a salvar. A dor pode ser preço,
nunca meta. Ao escancarar o sofrimento, e não o cerne da pregação jesuana (o
reinado de Deus e suas conseqüências
para a humanidade), a película vende,
cinematograficamente, uma imagem
desequilibrada e quase patológica do
cristianismo. As possíveis conversões
que alguns líderes religiosos mais incautos esperam obter com sua exibição serão mais problema do que solução.
Em suma, Gibson tem todo o direito
de propor sua versão seletiva do assassinato de Jesus. Mas, daí a se apresentar
como modelo de propagandista católico para este século, façam-me o favor!
Afonso Maria Ligorio Soares, 43, doutor em
ciências da religião pela Universidade Metodista
de São Paulo e em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, é professor-assistente do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP e autor de "Interfaces
da Revelação: pressupostos para uma teologia
do sincretismo religioso" (ed. Paulinas).
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