São Paulo, sábado, 20 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O filme "A Paixão de Cristo" tem conteúdo anti-semita?

NÃO

A paixão segundo o "Evangibson de Mel"

AFONSO MARIA LIGORIO SOARES

Escrevo ainda aturdido com o impacto da versão gibsoniana do maior mito ocidental: o flagelo da vítima inocente. Nessas condições, só posso responder negativamente à questão que me foi proposta (mas respeito a preocupação de personalidades como os rabinos Henry Sobel e Nilton Bonder, pois seguem a sabedoria milenar do "onde há fumaça...").
Passei a maior parte do tempo me desviando dos jorros de sangue, sobressaltado com a extrema crueldade, relatada na tela com apurado naturalismo. O único alento foi ver nosso herói vencer a todos ao ressuscitar. Se houve alguma intenção anti-semita no roteiro e na direção, ela simplesmente se perde naquilo que, para mim, é o real fio condutor da película: jogar-nos no rosto, com crueza e pitadas de terror, o tamanho da dor suportada pelo filho de Deus para redimir nossos pecados.
Mas de onde pode ter surgido, então, a acusação de anti-semitismo? Talvez isso se deva a uma engenhosa estratégia. Segundo consta, enquanto sua obra ainda era alvo das chacotas de colegas, o diretor apareceu num programa popular de TV para desmentir os boatos de que a obra fosse anti-semita. Não deu outra: a mídia mordeu a isca e foi conferir. Se essa anedota for mesmo verídica, Mel é um hábil marqueteiro. Também convém considerar a alegada infidelidade do filme aos fatos reais. Algumas lideranças judaicas reclamam que Gibson só fez reavivar alguns equívocos históricos que, no passado, legitimaram insanas perseguições ao povo judeu. A estupidez de alguns que se diziam cristãos chegou ao ponto do "esquecimento" de que não só alguns inimigos, como também os amigos, familiares e o próprio Jesus eram judeus!
Ora, não há como negar: o "Evangibson de Mel" está pontilhado de erros e incongruências perceptíveis a qualquer estudante de teologia mais atento. Nem me darei o trabalho de citá-los, pois isso já foi feito à exaustão, com o apoio de grandes especialistas. Entretanto reconheço que nenhum cineasta, por mais cuidadoso, conseguiria contentar todos os entendidos nesse quesito. Aliás, por que o faria? Cinema é cinema.
O que de fato me incomoda nessa Paixão é algo bem mais perigoso para todos nós, judeus e cristãos, crentes ou ateus: a insistência do diretor na observância literal dos evangelhos e a restrição do enredo às últimas horas de Jesus. Não julgo seu mérito artístico, mas já que Gibson também incluiu no marketing do filme sua opção católica e intenção missionária, é preciso salientar o viés fundamentalista dessa abordagem, que, como todo fundamentalismo, é sempre uma distorção: a pretensão de seguimento estrito do texto sagrado nunca deixa de ser uma seleção e interpretação (interessada) desse texto. Portanto o nó da questão não estaria no presumido anti-semitismo que busca confirmar na Bíblia suas teses racistas, mas numa leitura acrítica da mesma.
Acrítica, mas não inócua. Embora haja no filme passagens ternas -o jovem Jesus que brinca com a mãe, o encontro de Maria com a mulher de Pilatos-, frases famosas, como o "amai vossos inimigos", e bons achados -a figura do tentador que acompanha Jesus até seu último suspiro, a eucaristia que se cumpre na última ceia e no alto da cruz-, o que fica mesmo é a brutalidade dos golpes e a longa sessão de tortura a que é submetido o profeta galileu.
A teologia subjacente a tais imagens e que o diretor deve mais à vidente Anna Emmerich do que aos evangelhos parece dizer que grande foi nossa salvação porque enorme foi o flagelo do nazareno. A quantidade de sangue derramado ratifica nossa redenção. O Cristo de Gibson não tem outra saída para consumar sua missão, senão sofrer. E sofrer numa intensidade insuperável! Não erraria muito quem nele vislumbrasse o filho masoquista de um pai sádico.
Essa concepção, para dizê-lo de uma vez, não é evangélica nem cristã. A mais antiga tradição sempre afirmou que é o amor a salvar. A dor pode ser preço, nunca meta. Ao escancarar o sofrimento, e não o cerne da pregação jesuana (o reinado de Deus e suas conseqüências para a humanidade), a película vende, cinematograficamente, uma imagem desequilibrada e quase patológica do cristianismo. As possíveis conversões que alguns líderes religiosos mais incautos esperam obter com sua exibição serão mais problema do que solução.
Em suma, Gibson tem todo o direito de propor sua versão seletiva do assassinato de Jesus. Mas, daí a se apresentar como modelo de propagandista católico para este século, façam-me o favor!


Afonso Maria Ligorio Soares, 43, doutor em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo e em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, é professor-assistente do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP e autor de "Interfaces da Revelação: pressupostos para uma teologia do sincretismo religioso" (ed. Paulinas).


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