São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES A proibição da língua brasileira JOSÉ DE SOUZA MARTINS
Matéria publicada na Ilustrada de 18 de junho dava conta de
que uma nota da Anatel, de agosto de
2002, sobre um programa radiofônico
da FM Educativa, de Campo Grande
(MS), transmitido na língua nheengatu,
levantava a questão da sua legalidade
em face de uma lei de 1963 que proíbe
veiculações radiofônicas em língua estrangeira. A dúvida da Anatel põe em
questão a legalidade da língua ainda falada por brasileiros de várias regiões do
país e em suas variantes residuais ainda
falada por milhões de brasileiros, especialmente crianças e iletrados, que só
aparentemente falam o português oficial dos decretos.
Nossa língua cotidiana está algo distanciada da língua portuguesa, que é a oficial e, num certo sentido, é uma língua importada. Não raro viajamos entre toponímicos tupi. Na cidade de São Paulo, transito regularmente entre o Butantã e Carapicuíba e o Embu, aonde levo meus alunos, periodicamente, para uma aula de rua. Ou os levo ao Museu Paulista, no Ipiranga, para outra aula, ou à Moóca, para observações etnográficas sobre uma festa italiana. Faço tudo isso dentro da língua tupi. Como posso ir do rio Guaíba à Paraíba ou ao Pará ou ao Piauí sem achar que estou falando uma língua estrangeira, que ela não é. Em escolas rurais de povoados do Mato Grosso, do Pará e do Maranhão, observei um fato curioso. Uma vez que as crianças escrevem como falam, não é raro que acrescentem de preferência um "r" às palavras oxítonas, a letra usada como acento agudo: "ater", em vez de "até"; "Joser", em vez de "José". Algo que tem sua curiosa legitimidade no modo como se escrevia oficialmente o português até meados do século 19, letras fazendo as vezes de acentos e sinais. A própria língua falada, no confronto com a escrita, oferece às crianças inteligentes a chave de adaptação de uma à outra: se elas dizem "falá" e vêm que a palavra escrita é "falar", logo entendem que o "r" é aí acento, e não letra para ser pronunciada. É comovente a reação dos jovens quando descobrem que são falantes do que resta de uma língua que já foi a língua do povo brasileiro e que conhecem um grande número de sons e palavras tupi. O que lhes dizem ser erro e ignorância é, na verdade, história social, valorosa sobrevivência da nossa verdadeira língua brasileira. Se não fosse assim, seria impossível rir daquela história de dois mineiros que resolveram temperar a prosa com café. E foram para a cozinha. Água fervida, coador pronto, um pergunta para o outro: "Pó pô o pó?". E o outro responde, firme: "Pó pô!". De fato, somos um povo bilíngue, e o reconhecimento desse bilinguismo seria fundamental no trabalho dos educadores, em particular para enriquecer a compreensão da língua portuguesa, última flor do Lácio, inculta e bela, mais bela ainda porque invadida por esse outro lado da nossa identidade social, que teimamos em desconhecer. José de Souza Martins, 64, é professor titular do Departamento de Sociologia da USP. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Rogério Cezar de Cerqueira Leite: Gandhi e a economia do hidrogênio Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
|