São Paulo, segunda-feira, 20 de agosto de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Poder econômico

CALIXTO SALOMÃO FILHO


Aqui, o mais preocupante é que a estrutura econômica baseada em grandes monopólios foi incorporada e incentivada pelo direito


AS CONSTANTES crises políticas brasileiras, os escândalos de corrupção, a deficiente fiscalização e regulação por órgãos e autarquias governamentais e mesmo boa parte dos problemas sociais, aí incluída a violência, têm um componente que continua impenetrável: o poder econômico.
Impenetrável não por ser sua impressão digital de difícil descoberta nos casos concretos, mas porque suas ramificações e conseqüências sobre a organização política e social do país são profundas, a ponto de turvar a mente do observador, impedindo-o de distinguir causa e conseqüência.
Bem analisadas a relevância e as ramificações do poder econômico, descobre-se que a constante crise de instituições brasileiras tem como elemento central a estrutura econômica, e não apenas as instituições sociais, políticas e de governo.
Não é novidade afirmar que o poder econômico está na raiz do nosso processo de subdesenvolvimento. Elemento formador da economia colonial baseada no monopólio exportador e importador da metrópole, torna-se fator central na acumulação de capital das fases econômicas sucessivas, transplantando-se da economia agrícola para a industrial.
Essa lição, didaticamente explicada pelos autores clássicos de nossa história econômica, é sistematicamente desconsiderada por força de um curioso e artificial consenso. Curioso, por carecer de demonstração empírica. Artificial, pois às vozes dissonantes não é dada a necessária atenção.
No Brasil, o mais preocupante é que a estrutura econômica baseada em grandes monopólios, defendida por muitos economistas (que desconsideram importantes e recentes linhas de investigação econômica, como a proposta pela economia da informação), foi incorporada e incentivada pelo direito nas últimas décadas.
Tomemos dois exemplos, entre tantos outros, bastante expressivos.
A partir de 1994, o poder econômico ganha legitimidade de uma fonte no mínimo surpreendente: a própria lei de defesa da concorrência (lei nš 8.884), editada naquele ano. Promissora em seus objetivos, teve efeito exatamente contrário ao esperado.
A não-aplicação efetiva do controle estrutural pelos órgãos de defesa da concorrência -salvo raras exceções (a enorme maioria das concentrações entre empresas foi aprovada sem restrição expressiva)- fez com que o resultado da lei fosse, paradoxalmente, uma chancela estatal, inexistente até sua promulgação, de situações de elevadíssima concentração de poder.
A constitucionalidade da posição jurídica de muitos monopólios ou oligopólios, em sua essência bastante discutível, passou a ser de difícil contestação após a aprovação do ato de concentração, por ter sido sua criação chancelada pelo órgão estatal encarregado da defesa da concorrência.
Em 1995, um segundo exemplo. A nova lei de patentes, editada em meio a pressões internacionais pelo seu reconhecimento ilimitado, passa a permitir o patenteamento de produtos essenciais, como medicamentos.
Nova concentração de poder, evidentemente desnecessária em um país cujas dimensões e população não permitiriam o desabastecimento de medicamentos, mesmo que as condições de preço não fossem as monopolísticas, proporcionadas pelas patentes -a introdução posterior dos genéricos provaria essa última afirmação para muitos medicamentos.
Novamente aqui, não só a lei mas também uma particular interpretação da lei tem sua parcela de culpa.
Apesar de prever hipóteses de licenciamento compulsório de patentes em caso de interesse público e abuso de poder econômico, essa possibilidade (recém-utilizada com sucesso pelo Executivo, mas limitada a só um dos medicamentos do coquetel anti-retroviral) não é ainda entendida e aplicada em sua devida extensão, como política jurídica destinada a prover acesso amplo a medicamentos essenciais cujos preços são abusivos ou cujas condições de abastecimento são insuficientes. Isso torna o tratamento adequado de doenças graves como o câncer e a hepatite C de difícil acesso para a maioria da população.
Na verdade, o resultado mais latente dessa política de estímulo ao poder é que as relações de dominação e força, em vez de relações jurídicas, fundadas na moral e na ética, passam a ditar os relacionamentos econômicos e sociais.
O que nossa história recente no campo político e social parece demonstrar é que as relações de dominação não se limitam ao campo econômico. Elas acabam por espraiar sua lógica pelo campo político e social. No primeiro, a lógica de interesses substitui as práticas éticas. No segundo, a violência substitui o direito como forma de organização, ou melhor, de desorganização e degradação social.

CALIXTO SALOMÃO FILHO , 42, é professor titular de direito comercial da Faculdade de Direito da USP e professor do Institut de Sciences Politiques (Sciences Po), de Paris (França).

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