São Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um novo modelo

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Celso Furtado está há muito em busca de um novo modelo de desenvolvimento, embora saiba que a definição de um projeto nacional não é tarefa de uma pessoa, mas de uma nação. Em seu novo livro, "Em Busca de Novo Modelo" (Paz e Terra, 2002), se o nosso economista maior não encontrou esse modelo, ele pensa com grandeza e nos oferece pistas preciosas para reflexão.
Ele volta às raízes do desenvolvimento econômico: a revolução capitalista e a revolução científica. A interação entre esses dois processos deve ser buscada, de um lado, na intuição de Galileu de que a natureza seria racional e poderia ser reduzida a esquemas geometrizáveis e, de outro, no processo de acumulação capitalista que torna a racionalidade instrumental dominante.
Neste processo, porém, a industrialização tardia de países como o Brasil é muito diferente da dos países hoje desenvolvidos, porque, enquanto nestes a inovação e a difusão combinam-se para responder às próprias necessidades das sociedades, naqueles a difusão é marcada pela tentativa de imitação por parte das elites -as classes altas e médias- dos padrões de consumo do centro.
Essa reprodução dos padrões de consumo vai continuar a determinar hoje as duas tendências centrais das economias periféricas: as propensões ao endividamento externo e à concentração social da renda. Ambos os processos têm como matriz a alta propensão a consumir das elites brasileiras, em sua ansiedade em reproduzir o consumo central.
Comparando o Brasil com a Índia, ele nos apresenta dados poderosos em favor do seu argumento. Embora a Índia tenha uma renda por habitante que é um quinto da brasileira, sua taxa de poupança é consideravelmente maior do que a do Brasil. Como se explica isto? Pelo fato de a renda ser muito mais concentrada no Brasil nas classes altas e médias do que na Índia.
A busca da reprodução dos padrões de consumo norte-americanos está na raiz seja da concentração de renda, seja da baixa taxa de poupança. Desta, dada a própria natureza da tentativa; daquela, na medida em que a demanda para os bens de consumo de luxo produzidos depende dessa concentração.


As elites de hoje, alienadas em um grau impensável, fracassam na sua missão de dirigir o país


A primeira relação parece-me indiscutível. Já a segunda, eu creio que perdeu grande parte da sua validade. Nos anos 60 e 70, quando muitos dos bens de consumo de massa estavam restritos à classe média e à classe alta, a concentração de renda já existente era reforçada pelo tipo de bem produzido.
Hoje, no entanto, creio que o agravamento da concentração de renda deve ser buscado antes no enfraquecimento relativo dos pobres para defender seus interesses e no tipo de desenvolvimento tecnológico, que aumentou a demanda de trabalho qualificado.
Mais importante na análise de Furtado, porém, é o fato de que as classes beneficiadas com essa concentração não se revelam à altura de seu papel de elite. Ao copiarem os padrões de consumo norte-americanos, não poupam para investir e endividam o país no exterior.
A acusação de prática de populismo econômico, que essas classes usam para atacar os políticos populares, é indevida, porque é o consumo delas, e não o dos pobres, que leva ao déficit público e, principalmente, ao "populismo cambial" -a valorização artificial do câmbio, em nome do combate à inflação, para facilitar o consumo de bens e serviços com considerável componente importado. Não são os pobres que adquirem bens importados.
Celso Furtado concentra, assim, sua análise no consumo das elites. Estou de acordo, mas seria ainda mais severo.
É patético o fracasso político dessas elites. Enquanto as elites cafeeiras do Oeste paulista e, mais tarde, as elites industrias e tecnocráticas, que surgiram entre os anos 30 e 50, foram notáveis em promover o desenvolvimento nacional, as elites de hoje, alienadas em um grau impensável, fracassam na sua missão de dirigir o país. Ao reproduzirem os padrões de consumo do centro, reproduzem também, de forma acrítica, a ideologia externa. Em vez de definirem qual o interesse nacional e o defenderem, dedicam-se ao "confidence building". O que lhes interessa é saber o que os estrangeiros pensam do Brasil, não o que o Brasil pensa sobre seu futuro.
Celso Furtado percebe este fato quando afirma que "o ponto de partida do processo de reconstrução que temos de enfrentar deverá ser uma participação maior do povo no processo de decisão" (pág. 36), mas em seguida, contraditoriamente, ele manifesta sua esperança de que os intelectuais ajam como uma vanguarda para evitar que a mancha de irracionalidade se alastre. Não creio que os intelectuais tenham essa capacidade ou mesmo essa virtualidade.
Só vejo esperança para o Brasil na medida em que a democracia se aprofunde, que círculos cada vez mais amplos da população se envolvam no debate público, estabelecendo limites para a alienação das classes médias e altas.
Furtado tem toda a razão quando diz que a questão central é saber se temos ou não possibilidade de preservar nossa identidade cultural e nacional. De forma talvez igualmente contraditória, estou seguro de que a temos, não obstante toda a força da ideologia "globalista", que insiste na tese da crescente debilitação dos Estados nacionais.
Na globalização, os Estados nacionais são mais interdependentes, mas precisam ser cada vez mais fortes. Globalização é competição entre empresas nacionais (convencionalmente chamadas de multinacionais) em nível mundial. O que os governos dos países ricos fazem é defender o capital e o trabalho nacionais, ou seja, suas empresas nacionais. O Brasil não tem outra alternativa, a não ser fazer o mesmo.


Luiz Carlos Bresser Pereira, 68, é professor de economia da FGV-SP e professor visitante de teoria política na USP. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney).



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