São Paulo, quarta-feira, 20 de outubro de 2004

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A QUESTÃO NUCLEAR

Ao que parece, caminha para uma solução negociada a queda-de-braço entre o governo brasileiro e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) a respeito das inspeções na usina de enriquecimento de urânio de Resende (RJ). As autoridades brasileiras se comprometeriam a revelar um pouco mais das instalações, e a agência deixaria de exigir o "acesso irrestrito" como vinha fazendo até agora.
O compromisso parece ser a melhor maneira de desarmar o impasse, mas é preciso consignar que o Brasil não está nem legal nem moralmente obrigado a abrir Resende à devassa da AIEA. Embora o país seja signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), não o é do Protocolo Adicional ao acordo, que prevê vistorias irrestritas e intempestivas.
O argumento brandido pelo governo brasileiro de que está protegendo segredos industriais na área de ultracentrifugação é defensável, mas não vai muito longe. Resende não encerra nenhuma revolução tecnológica e, se alguma potência quisesse de fato descobrir detalhes do sistema -se é que já não o fez-, teria vários outros caminhos para seguir.
No mais, a preocupação que alguns países possam ter com a eventual utilização bélica do enriquecimento do urânio pelo Brasil não se justifica. A Constituição só permite a utilização da energia nuclear para fins pacíficos e não se sustenta a idéia fantasiosa de que o país seria uma potencial ameaça nuclear.
Desde que em decisão soberana, o Brasil poderia perfeitamente subscrever o Protocolo Adicional. Para assiná-lo, contudo, seria razoável cobrar contrapartidas de outros países, notadamente daqueles que fazem parte do restrito grupo de membros nucleares do TNP.
Esse acordo é marcado por assimetrias que precisam ser mais bem discutidas. Por que apenas EUA, Rússia, Reino Unido, França e China deveriam ter o direito de possuir armas atômicas? É claro que quanto menos países mantiverem bombas nucleares melhor para o mundo, pois se reduzem os riscos de que esses artefatos sejam utilizados proposital ou inopinadamente. Mas esse raciocínio pragmático não deve de modo algum legitimar o fosso jurídico que o TNP pretende eternizar ao estabelecer duas categorias de nação -as detentoras de armas e as que jamais poderiam desenvolvê-las.
O desfile de hipocrisias nas adjacências do tratado se agrava quando se consideram os países que mantêm a bomba extra-oficialmente: Israel, Índia e Paquistão, que jamais aderiram ao acordo. Por que os EUA e seus aliados pressionam o Irã para encerrar o seu programa nuclear e ignoram os artefatos israelenses? Por que ameaçam a Coréia do Norte, que se retirou do TNP, o que, em tese, lhe dá o direito de possuir armas, e não demonstram o mesmo empenho nos casos da Índia e do Paquistão?
O Brasil, como um país pacífico, deve permanecer no TNP. É preciso, porém, vincular a assinatura do Protocolo Adicional a avanços concretos nos objetivos de desarmamento, como a definição de um cronograma para o desmantelamento dos arsenais nucleares. A existência de duas categorias de países -alguns com direito a armas e outros sem- só pode ser admitida como excepcional e transitória, jamais como definitiva.


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