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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Passado e futuro do governo Lula
1. O tema latente na sucessão presidencial foi "mudança do modelo
econômico". Concordavam os quatro
principais candidatos na necessidade
de criar condições para diminuir nossa dependência dos ciclos de liquidez
na economia mundial e para democratizar o acesso às oportunidades de
emprego e de ensino.
2. Apoiei a candidatura de Ciro Gomes por identificar nela a disposição
mais clara de levar a sério o discurso
de mudança do modelo.
3. Inviabilizada essa candidatura e
previsto Serra como concorrente de
Lula no segundo turno, a prioridade
era defender as instituições republicanas. Apesar dos méritos do candidato
oficial, sua eleição se arriscava a sufocar, num continuísmo carregado de
intimidação, a ainda frágil democracia
brasileira. Cabia aos dois outros candidatos de oposição renunciar a tempo de definir a eleição no primeiro
turno, evitando o risco de golpes baixos que rondava o segundo turno.
4. Esse risco acabou por não se consumar, não sem alguns sustos. Frustrou-se, porém, o outro objetivo a ser
viabilizado pela retirada de Ciro e de
Garotinho: pactuar a composição e,
portanto, o rumo do futuro governo e
impedir que se adiasse para as calendas gregas a mudança do modelo. Desobrigado, o novo presidente organizou governo da ala dominante do PT,
que reduziu as outras forças progressistas a satélites. Deu prioridade a
duas propostas: reforma da Previdência, orientada no mesmo sentido fiscalista da reforma buscada pelo governo
anterior, e campanha humanitária
contra a fome. Seria apenas transição.
As supostas transições, porém, costumam se perpetuar.
5. O governo do PT já teve a virtude
de demonstrar seriedade em três
compromissos de importância capital: com a moralização do Estado, com
o socorro aos mais pobres e com a
atuação ousada do Brasil no mundo,
embora esse último compromisso
ameace ser desvirtuado por iniciativas
provocadoras, de alto custo e de pouco benefício.
6. A divisória definidora do destino
do governo está nos temas que compõem o cerne de um projeto libertador no Brasil hoje: aumento do salário
real e democratização do acesso ao
trabalho e ao crédito; mobilização da
poupança de longo prazo para o investimento de longo prazo; ampliação
de ilhas de excelência no ensino público para radicalizar a meritocracia e
fundação das instituições de uma democracia de alta energia, que gerem
partidos políticos fortes, limitem a influência do dinheiro na política e engajem os cidadãos, de baixo para cima, na solução dos problemas coletivos. Sem redistribuir renda e poder,
nenhum país na história moderna se
engrandeceu.
7. Duas pontes podem ligar o programa de transição ensaiado pelo governo do PT e esse projeto democratizante. A primeira ponte é econômica:
para evitar a crise cambial, equacionar
a dívida pública e baixar os juros, é
preciso contar com mais poupança e
com mais dólares. Controles cambiais
podem vir a ser necessários. A segunda ponte é política: para avançar em
reformas democratizantes, é preciso
reconciliar a negociação política e social com a pressão que resulta da mobilização popular. A melhor maneira
de evitar que a "transição" se torne
permanente é insistir no que precisamos fazer para não ficar de joelhos
diante dos interesses poderosos, fora
ou dentro do Brasil.
8. A tarefa dos aliados críticos do governo do PT é nos organizarmos, intelectual e politicamente, para apoiar e
para monitorar o governo. E, se o governo malograr no esforço transformador, para impedir que o eixo da política brasileira, na forma de alternância entre o PSDB e o PT, se reduza a rodízio entre duas vertentes de um mesmo projeto, incapaz de libertar os brasileiros.
Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger
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