São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2007

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Excesso diplomático

Não cabe à política externa brasileira justificar a "transição pacífica" de Hugo Chávez rumo ao autoritarismo

COMPREENDE-SE que a linguagem diplomática seja muitas vezes imprecisa, no interesse de construir delicadas pontes entre aquilo que se deseja e aquilo se verifica realmente.
Não causa estranheza, pois, o documento assinado pelos chefes de Estado presentes à última reunião do Mercosul, no qual estes reiteram "o firme compromisso de seus governos com a consolidação democrática e o respeito aos direitos humanos".
São infelizmente comuns em nosso continente, entretanto, os momentos em que a simples expressão de uma fórmula protocolar se transforma em instantâneo exercício de cinismo.
Tecnicamente, não cabe ainda classificar de ditatorial o regime de Hugo Chávez; cada vez menos, entretanto, o termo "democrático" lhe pode ser atribuído sem qualificações.
Com exata ironia, já foi descrito como "transição pacífica para o autoritarismo" o processo em curso na Venezuela. Porque lhe fazia oposição, Chávez decide não renovar a concessão para funcionamento de uma rede de TV. Porque a "revolução bolivariana" é projeto de um homem só, Chávez pleiteia o direito ilimitado à reeleição. Porque não lhe basta um Congresso capaz de apoiá-lo em tudo, Chávez requer um prazo de 18 meses para governar por decreto.
Assuntos internos à Venezuela, afirma Brasília, esquecendo-se das cláusulas democráticas do Mercosul e da Organização dos Estados Americanos. O princípio da não-intervenção entre países soberanos, de todo modo, bastaria para recomendar à diplomacia brasileira máxima discrição no tema. Não é o que se verifica.
Autoridades do Itamaraty cuidam de justificar os atos de Chávez. Tudo se faz, argumentam, de acordo com as leis venezuelanas; quanto ao direito ilimitado à reeleição, existe na França e só foi coibido nos EUA depois de Franklin Roosevelt ser conduzido ao cargo pela quarta vez. Foi o que disse, em entrevista à Folha, o futuro embaixador brasileiro em Washington, Antonio Patriota.
Salta aos olhos o formalismo da argumentação. Desse ponto de vista, poder-se-ia lembrar que Hitler ascendeu ao poder conforme as leis de seu país e que a Coréia do Norte não difere da França no quesito da recondução de um governante ao poder. A diferença, obviamente, está entre uma real democracia representativa e as caricaturas que lhe tomam de empréstimo este ou aquele atributo.
Que Chávez se proclame como perfeito democrata, eis algo coerente com o rudimentar figurino humorístico do personagem, e que não destoa do cinismo dos ditadores de qualquer parte do mundo. A diplomacia brasileira faria melhor em silenciar diante da farsa; preferiu coadjuvá-la.


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