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Excesso diplomático
Não cabe à política externa brasileira justificar a "transição pacífica" de Hugo Chávez rumo ao autoritarismo
COMPREENDE-SE que a linguagem diplomática seja muitas vezes imprecisa, no interesse de construir delicadas pontes entre
aquilo que se deseja e aquilo se
verifica realmente.
Não causa estranheza, pois, o
documento assinado pelos chefes de Estado presentes à última
reunião do Mercosul, no qual estes reiteram "o firme compromisso de seus governos com a
consolidação democrática e o
respeito aos direitos humanos".
São infelizmente comuns em
nosso continente, entretanto, os
momentos em que a simples expressão de uma fórmula protocolar se transforma em instantâneo exercício de cinismo.
Tecnicamente, não cabe ainda
classificar de ditatorial o regime
de Hugo Chávez; cada vez menos, entretanto, o termo "democrático" lhe pode ser atribuído
sem qualificações.
Com exata ironia, já foi descrito como "transição pacífica para
o autoritarismo" o processo em
curso na Venezuela. Porque lhe
fazia oposição, Chávez decide
não renovar a concessão para
funcionamento de uma rede de
TV. Porque a "revolução bolivariana" é projeto de um homem
só, Chávez pleiteia o direito ilimitado à reeleição. Porque não
lhe basta um Congresso capaz de
apoiá-lo em tudo, Chávez requer
um prazo de 18 meses para governar por decreto.
Assuntos internos à Venezuela, afirma Brasília, esquecendo-se das cláusulas democráticas do
Mercosul e da Organização dos
Estados Americanos. O princípio
da não-intervenção entre países
soberanos, de todo modo, bastaria para recomendar à diplomacia brasileira máxima discrição
no tema. Não é o que se verifica.
Autoridades do Itamaraty cuidam de justificar os atos de Chávez. Tudo se faz, argumentam, de
acordo com as leis venezuelanas;
quanto ao direito ilimitado à reeleição, existe na França e só foi
coibido nos EUA depois de Franklin Roosevelt ser conduzido ao
cargo pela quarta vez. Foi o que
disse, em entrevista à Folha, o
futuro embaixador brasileiro em
Washington, Antonio Patriota.
Salta aos olhos o formalismo
da argumentação. Desse ponto
de vista, poder-se-ia lembrar que
Hitler ascendeu ao poder conforme as leis de seu país e que a
Coréia do Norte não difere da
França no quesito da recondução de um governante ao poder.
A diferença, obviamente, está
entre uma real democracia representativa e as caricaturas que
lhe tomam de empréstimo este
ou aquele atributo.
Que Chávez se proclame como
perfeito democrata, eis algo coerente com o rudimentar figurino
humorístico do personagem, e
que não destoa do cinismo dos
ditadores de qualquer parte do
mundo. A diplomacia brasileira
faria melhor em silenciar diante
da farsa; preferiu coadjuvá-la.
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