São Paulo, segunda-feira, 21 de fevereiro de 2000


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Carta ao sr. presidente da República


Como mestre e como intérprete de sonhos, o senhor poderá fazer o essencial: criar um povo


RUBEM ALVES

Senhor presidente: primeiro peço perdão por não estar familiarizado com as etiquetas da corte. Ilustríssimos, excelentíssimos e magníficos têm, para mim, um cheiro misto de incenso e humor. A um moço que o chamara de "bom", Jesus disse: "Por que me chamas bom? Bom há um só, que é Deus!". Pois, entre nós, os homens de poder não se contentam em ser chamados "bons". "Muito bom" é pouco. "Excelente" não chega. São "excelentíssimos". Mas a verdade não cavalga reverências. Assim, vou chamá-lo apenas de "senhor". Imagino o seu sofrimento de sociólogo crítico em meio a essas palavras ocas.
Segundo, quero demonstrar minha admiração por sua coragem em ser presidente duas vezes. Confesso minha total incompetência nesse campo. Várias vezes amigos tentaram me seduzir a me candidatar a deputado. Em momentos de insanidade cheguei a brincar com a idéia. Mas me curei depois que visitei o Congresso. Meu horror foi total. Um prédio sem janelas! Acho que Niemeyer, amigo do cimento, inimigo das árvores, deve ter projetado aquilo de propósito, para enlouquecer os políticos. A posição máxima a que eu me candidataria seria a de "bobo da corte". A esse propósito vale a pena ler o ensaio do filósofo Leszek Kolakowski, "O sacerdote e o bufão".
O senhor, é certo, não se esqueceu das lições de Durkheim, sociólogo amaldiçoado pelos marxistas. Disse ele: "Uma sociedade não é feita meramente com a massa de indivíduos que a compõe, o espaço que ocupam, as coisas que usam, os movimentos que fazem: acima de tudo está a idéia que ela forma de si mesma". Agostinho já tinha dito o mesmo: o que forma um povo é um objeto comum de amor. Os socialistas utópicos e Mannheim deram o nome de utopia a esse objeto social de amor: uma esperança bonita que une as pessoas e faz com que marchem juntas.
Temos um povo? Eu penso que a tarefa de um líder político é mais que administrar: é criar um povo. Um povo se faz com idéias que dão sentido à vida em comum. Um povo se alimenta de utopias. "Não só de pão viverá o homem, mas de palavras..." Não temos um povo porque a nossa gente parou de sonhar. E, ao parar de sonhar, não tem razões para pensar. Em vez de pensamento, programas do Ratinho, do Silvio Santos, do Gugu e da Hebe, que têm preferência absoluta em relação às declarações dos políticos, inclusive as suas. As pessoas não se interessam por duas razões: por não entender e por não acreditar no pouco que entendem.
O senhor já se imaginou como pedagogo-mor, o mestre que dá sonhos e pensamento ao povo? Bachelard dizia -e a psicanálise confirma- que só se convence "despertando sonhos fundamentais". Sonhos fundamentais são aqueles que moram na alma das pessoas e que foram enterrados no esquecimento por sua sucessiva frustração.
Um líder é uma pessoa que vê os sonhos das pessoas e os transforma em palavras e gestos. Nele o povo vê os seus sonhos sob a forma de uma pessoa. Assim aconteceu com todos os grandes líderes políticos. Gandhi, com sua marcha do sal e sua mansidão. Kennedy, com seus sonhos de um progresso solidário que transformaria o mundo. Martin Luther King: lembra-se do seu discurso "I have a dream"? E Hitler (o Diabo também produz líderes), que mobilizou um povo com três idéias maravilhosas: limpeza, saúde e beleza.
O pensamento vivo está ligado à ação possível. Pensamos para poder agir. O que está além da nossa possibilidade de ação não é pensado. E o campo das ações possíveis das pessoas comuns é o espaço do seu cotidiano, aquilo que está ao alcance de suas mãos, na casa, na rua, no bairro, na cidade.
O senhor, ao se dirigir ao povo, fala sobre coisas grandes, programas de governo, acordos com o FMI, estabilidade monetária, combate à inflação, novos empregos, coisas muito boas -mas abstratas. Sonhos não se fazem com abstrações. Abstrações pertencem ao discurso dos sociólogos, economistas e administradores -não entram no imaginário das pessoas. Seria bom que o senhor convidasse, como assessores, alguns poetas. O Manoel de Barros e a Adélia Prado, por exemplo. Quando eles falam, todo mundo se comove, porque os poetas têm o poder de dar vida às abstrações.
As pessoas ouvem o líder quando ele fala sobre coisas que compõem o seu cotidiano: o medo da violência (é inútil falar sobre a construção de novas penitenciárias ou a compra de novos carros para a polícia) e aquilo que as comunidades podem criativamente fazer, a insegurança quanto ao futuro, as crianças abandonadas que enchem as ruas, a saúde, as filas nos hospitais, a velhice desamparada, a ecologia, a natureza, a sujeira, o lixo.
Há uma poluição estrutural-empresarial, como a que aconteceu na baía de Guanabara. Mas há uma poluição que resulta do fato de as pessoas acharem normal a sujeira. Jogar garrafas de plástico nas praias e no mar, jogar latas de cerveja nas matas são, para elas, gestos inocentes e normais. As empresas que usam garrafas plásticas e latinhas de alumínio bem que poderiam fazer algo para educar o povo. A mídia, especialmente a televisão, poderia fazer muito mais para ensinar o povo a sonhar e pensar. Escrevi carta ao sr. Roberto Marinho e ao ministro da Educação sobre o assunto, que foram publicadas pela Folha. Mas eles não deram sinal de vida. Espero que o senhor dê.
Como administrador, o senhor poderá fazer muitas coisas importantes -o Plano Real, por exemplo-, umas boas, outras más. Não é possível acertar sempre. Mas, como mestre e como intérprete de sonhos, o senhor poderá fazer o que é essencial: criar um povo. Bonito seria que seu próximo discurso começasse como o de Luther King: "Eu tenho um sonho...".


Rubem Alves, 64, educador, escritor e psicanalista, é professor emérito da Universidade Estadual de Campinas. É autor de "Entre a Ciência e a Sapiência: o Dilema da Educação" (Edições Loyola), entre outras obras.



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