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JOSÉ SARNEY
Tancredo e o telefone
A droga tecnológica é um vício
que está a modificar nossos códigos de conduta. É a droga da modernidade, com sua parafernália de comunicação, que nos impõe uma situação
perigosa: a obrigação de consumi-la,
sem ter o direito de optar por não ingeri-la.
Ela mudou tudo e atingiu, com a
transparência total, a privacidade absoluta. Perdemos a liberdade de estar
sós e o Estado não tem condições de
assegurar nossas liberdades. Para termos direito à privacidade, temos de
nos transformar em ermitãos, consumindo a solidão.
Com uma caixinha cheia de "chips"
e minúsculos fios -o celular- podemos localizar qualquer pessoa, em
qualquer lugar do mundo, receber notícias, transmitir informações, saber
do tempo, fazer cálculos, recuperar os
recados que mandam de outra máquina diabólica, feita de cabos e com um
teclado, que conecta todo o mundo
em tempo real, dar informações,
transmitir milhões e milhões de dados
sobre tudo, sem um centro gerador e
produtor, e vai crescendo e expandindo-se até o infinito. É o tão falado conceito de rede.
Outra mudança foi o culto da velocidade. Não temos mais liberdade de
andar. As distâncias e o estilo de vida
que adotamos tornam-nos dependentes da velocidade. É o patim, a bicicleta, a moto, o carro, o ônibus, o trem, o
avião.
Já não faz sentido escrever cartas. A
civilização é oral, é o telefone o seu
maior instrumento. Escrever passou a
ser nas relações humanas alguma coisa atrasada. Escreve-se para confirmar
o que se falou. E o que se falou não é
mais uma coisa privada, mas uma vulnerabilidade pública. Fala-se a um
simpósio. Fala-se, também, pelo fax,
pelo computador, pelo cinema, pela
televisão.
A esse mundo incorporou-se uma
coisa que é hoje tema em todos os centros de pensamento do mundo da comunicação: a liberdade, como nós a
concebemos, passou a ser vulnerável e
sujeita a opacidades. Não avaliamos
ainda até onde a droga da modernidade atingiu as instituições não só públicas, mas privadas.
As gerações despolitizam-se. Já é raridade o sonho de salvar o mundo.
Não há formação destinada à atração
do idealismo. As forças canalizam-se
para manifestações de inconformismo caótico. O conceito de povo é
substituído pelo de multidão. O Estado não é mais expressão de soberania,
tão fortes e tão grandes são suas vulnerabilidades num mundo globalizado,
principalmente na área financeira.
São os computadores que fornecem o
conceito de risco. O Estado-nação parece agonizar. A evolução deu fim às
construções institucionais que herdamos do Renascimento e do Iluminismo.
Se, por um lado, o indivíduo é mais
livre, ele está, por outro lado, à deriva.
O paradoxo do século é este: somos
mais livres, mas, ao mesmo tempo,
mais frágeis e vulneráveis.
Tudo isso está presente quando pensamos nos "perigos de viver", como
dizia Rosa. Os países estão na mão dos
computadores dos grandes centros financeiros, e nossa liberdade individual, à mercê das tecnologias que nos
facilitam a vida, mas nos tornam vulneráveis. Estamos mais livres para falar e mais contidos para falar.
Bem dizia Tancredo: "Telefone só
para marcar encontro no lugar errado".
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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