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São Paulo, sexta-feira, 21 de fevereiro de 2003

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JOSÉ SARNEY

Tancredo e o telefone

A droga tecnológica é um vício que está a modificar nossos códigos de conduta. É a droga da modernidade, com sua parafernália de comunicação, que nos impõe uma situação perigosa: a obrigação de consumi-la, sem ter o direito de optar por não ingeri-la.
Ela mudou tudo e atingiu, com a transparência total, a privacidade absoluta. Perdemos a liberdade de estar sós e o Estado não tem condições de assegurar nossas liberdades. Para termos direito à privacidade, temos de nos transformar em ermitãos, consumindo a solidão.
Com uma caixinha cheia de "chips" e minúsculos fios -o celular- podemos localizar qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, receber notícias, transmitir informações, saber do tempo, fazer cálculos, recuperar os recados que mandam de outra máquina diabólica, feita de cabos e com um teclado, que conecta todo o mundo em tempo real, dar informações, transmitir milhões e milhões de dados sobre tudo, sem um centro gerador e produtor, e vai crescendo e expandindo-se até o infinito. É o tão falado conceito de rede.
Outra mudança foi o culto da velocidade. Não temos mais liberdade de andar. As distâncias e o estilo de vida que adotamos tornam-nos dependentes da velocidade. É o patim, a bicicleta, a moto, o carro, o ônibus, o trem, o avião.
Já não faz sentido escrever cartas. A civilização é oral, é o telefone o seu maior instrumento. Escrever passou a ser nas relações humanas alguma coisa atrasada. Escreve-se para confirmar o que se falou. E o que se falou não é mais uma coisa privada, mas uma vulnerabilidade pública. Fala-se a um simpósio. Fala-se, também, pelo fax, pelo computador, pelo cinema, pela televisão.
A esse mundo incorporou-se uma coisa que é hoje tema em todos os centros de pensamento do mundo da comunicação: a liberdade, como nós a concebemos, passou a ser vulnerável e sujeita a opacidades. Não avaliamos ainda até onde a droga da modernidade atingiu as instituições não só públicas, mas privadas.
As gerações despolitizam-se. Já é raridade o sonho de salvar o mundo. Não há formação destinada à atração do idealismo. As forças canalizam-se para manifestações de inconformismo caótico. O conceito de povo é substituído pelo de multidão. O Estado não é mais expressão de soberania, tão fortes e tão grandes são suas vulnerabilidades num mundo globalizado, principalmente na área financeira. São os computadores que fornecem o conceito de risco. O Estado-nação parece agonizar. A evolução deu fim às construções institucionais que herdamos do Renascimento e do Iluminismo.
Se, por um lado, o indivíduo é mais livre, ele está, por outro lado, à deriva. O paradoxo do século é este: somos mais livres, mas, ao mesmo tempo, mais frágeis e vulneráveis.
Tudo isso está presente quando pensamos nos "perigos de viver", como dizia Rosa. Os países estão na mão dos computadores dos grandes centros financeiros, e nossa liberdade individual, à mercê das tecnologias que nos facilitam a vida, mas nos tornam vulneráveis. Estamos mais livres para falar e mais contidos para falar.
Bem dizia Tancredo: "Telefone só para marcar encontro no lugar errado".


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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