São Paulo, sábado, 21 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O projeto da nova política sobre drogas representa um avanço da legislação?

NÃO

O PT surpreende de novo

WÁLTER MAIEROVITCH

No campo das drogas ilícitas, o governo Lula é uma continuação do anterior. Em 1998, quando candidato, Lula criticou, carregado de razões, as convenções das Nações Unidas. Elas foram elaboradas, a partir de 1961, sob influência norte-americana. A respeito, Lula e outros líderes subscreveram ao secretário-geral da ONU.
Para os norte-americanos, a criminalização da posse de drogas para uso próprio é o caminho para inibir a demanda. A criminalização, no entanto, não tirou dos EUA o título de campeões mundiais de consumo. Apenas como exemplo, na década de 60, quando foi deflagrada a chamada "war on drugs", os norte-americanos estimaram em 100 mil cidadãos os usuários de maconha. No ano de 2003, os consumidores habituais ultrapassaram a casa dos 14 milhões.
Os subscritores da "public letter to Kofi Annan" entenderam equivocada essa criminalização. A questão deveria ser encarada como de saúde pública, e não criminal. Em outras palavras, o usuário era vítima de si próprio.
Muitos países afastaram-se da linha norte-americana e das convenções da ONU. Portugal deixou de incriminar a posse para fins recreativos e manteve a proibição como infração administrativa. No campo terapêutico, a maconha foi liberada na Holanda, na Bélgica, no Canadá e no Estado da Califórnia. O emprego de drogas substitutivas, com uso das mais leves, é admitido na Suíça, Holanda e Espanha.
As práticas sócio-sanitárias redutoras de danos multiplicaram-se. Para evitar riscos a terceiros e acidentes pessoais, a Alemanha legalizou as narco-salas, que também estão sendo testadas na Austrália e na Espanha.
O "pill testing" é empregado na França, Austrália, Espanha, Holanda e Áustria. Assim, o jovem pode testar a droga que pretende consumir e evitar danos e internações hospitalares, já que proliferam drogas sintéticas contaminadas.
Na Holanda, a proibição do porte permanece, mas em cerca de 800 cafés pode-se vender maconha. A venda e o consumo em espaços delimitados serviram para afastar o usuário do traficante.
Além disso, ninguém até hoje morreu de overdose de maconha, possível apenas com o consumo ininterrupto de quatro quilos. A conservadora Grã-Bretanha, por provocação da Associação Britânica de Policiais, mudou a classificação da cannabis. Foi rebaixada para droga leve, facultado ao policial lavrar multa ou apreender a droga portada.
Na quinta-feira, dia 12, a nossa Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 7.134. Feito o cotejo com as mudanças ocorridas no Primeiro Mundo, o Brasil pintou a carroça, em tempos de Fórmula 1.
O projeto 7.134 seguiu a linha criminalizante do governo FHC, de padrão norte-americano. FHC procurou mudar a velha lei sobre drogas, de 1976. A mudança foi aprovada no Congresso e FHC vetou-a em quase 80%, em janeiro de 2002: a lei velha era melhor.
A mesma marca "made in USA" está no projeto incensado por Lula. Esse projeto trata como criminoso aquele surpreendido na posse de droga para lúdico. E impõe, por considerá-lo criminoso, penas restritivas de direitos, como prestação de serviços à comunidade.
Os idealizadores do projeto 7.134 destacaram, como conquista, o impedimento da prisão do portador de droga para uso próprio. Esqueceram de dizer que mantiveram a criminalização, com outras sanções. Fizeram uma despenalização limitada, além da universal prática de aumentar penas aos traficantes, num país acostumado a pescar narcos pequenos.
Desde 1984, e quando mudada a parte geral do Código Penal, a pena de prisão contemplada na lei sobre drogas, de 1976, pode ser substituída por multa. Além disso, a recente legislação que instituiu os Juizados Criminais Especiais Federais reforçou a não-imposição da prisão. Assim, o novo projeto vai alcançar apenas o reincidente, que continuará a não contar com o amparo do SUS e a não receber informações por meio de campanhas governamentais.
O projeto 7.134 distingue o usuário do traficante pela "pequena quantidade" apreendida. Ao contrário das legislações de outros países, abandonou o critério objetivo. Como é o policial quem surpreende o usuário na posse, ocorrerão prisões em flagrante a seu critério.
Apenas numa segunda etapa haverá a avaliação pelo juiz. Os tribunais superiores serão chamados a resolver conflitos sobre a tal "pequena quantidade". E o Supremo Tribunal Federal fará o papel de legislador, estabelecendo esse critério: súmula vinculante?
No mesmo dia em que a Câmara aprovou o projeto 7.134, o primeiro-ministro do Canadá, Paul Martin, membro do Partido Liberal, encaminhou ao Parlamento o projeto de lei sobre drogas, objeto de ampla discussão. Na sua entrega, o ministro da Justiça, Irwin Cotler, observou: "O consumo de drogas deve ser desencorajado, mas não se deve emporcalhar, com uma marca criminal, a vida de uma pessoa surpreendida com drogas para uso próprio".
Como se nota, a carta de Lula a Annan foi esquecida, e os seus companheiros gostaram da criminalização. Que tal explicitar no crachá do trabalhador comunitário, condenado por usar drogas, o rótulo judicial de criminoso?


Wálter Fanganiello Maierovitch, 56, juiz aposentado do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, é presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Giovanne Falcone. Foi secretário nacional antidrogas da Presidência da República (1999-2000).


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