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TENDÊNCIAS/DEBATES
O projeto da nova política sobre drogas representa um avanço da legislação?
NÃO
O PT surpreende de novo
WÁLTER MAIEROVITCH
No campo das drogas ilícitas, o governo Lula é uma continuação do
anterior. Em 1998, quando candidato,
Lula criticou, carregado de razões, as
convenções das Nações Unidas. Elas foram elaboradas, a partir de 1961, sob influência norte-americana. A respeito,
Lula e outros líderes subscreveram ao
secretário-geral da ONU.
Para os norte-americanos, a criminalização da posse de drogas para uso próprio é o caminho para inibir a demanda.
A criminalização, no entanto, não tirou
dos EUA o título de campeões mundiais
de consumo. Apenas como exemplo, na
década de 60, quando foi deflagrada a
chamada "war on drugs", os norte-americanos estimaram em 100 mil cidadãos os usuários de maconha. No ano
de 2003, os consumidores habituais ultrapassaram a casa dos 14 milhões.
Os subscritores da "public letter to
Kofi Annan" entenderam equivocada
essa criminalização. A questão deveria
ser encarada como de saúde pública, e
não criminal. Em outras palavras, o
usuário era vítima de si próprio.
Muitos países afastaram-se da linha
norte-americana e das convenções da
ONU. Portugal deixou de incriminar a
posse para fins recreativos e manteve a
proibição como infração administrativa. No campo terapêutico, a maconha
foi liberada na Holanda, na Bélgica, no
Canadá e no Estado da Califórnia. O
emprego de drogas substitutivas, com
uso das mais leves, é admitido na Suíça,
Holanda e Espanha.
As práticas sócio-sanitárias redutoras
de danos multiplicaram-se. Para evitar
riscos a terceiros e acidentes pessoais, a
Alemanha legalizou as narco-salas, que
também estão sendo testadas na Austrália e na Espanha.
O "pill testing" é empregado na França, Austrália, Espanha, Holanda e Áustria. Assim, o jovem pode testar a droga
que pretende consumir e evitar danos e
internações hospitalares, já que proliferam drogas sintéticas contaminadas.
Na Holanda, a proibição do porte permanece, mas em cerca de 800 cafés pode-se vender maconha. A venda e o
consumo em espaços delimitados serviram para afastar o usuário do traficante.
Além disso, ninguém até hoje morreu
de overdose de maconha, possível apenas com o consumo ininterrupto de
quatro quilos. A conservadora Grã-Bretanha, por provocação da Associação
Britânica de Policiais, mudou a classificação da cannabis. Foi rebaixada para
droga leve, facultado ao policial lavrar
multa ou apreender a droga portada.
Na quinta-feira, dia 12, a nossa Câmara dos Deputados aprovou o projeto de
lei 7.134. Feito o cotejo com as mudanças ocorridas no Primeiro Mundo, o
Brasil pintou a carroça, em tempos de
Fórmula 1.
O projeto 7.134 seguiu a linha criminalizante do governo FHC, de padrão
norte-americano. FHC procurou mudar a velha lei sobre drogas, de 1976. A
mudança foi aprovada no Congresso e
FHC vetou-a em quase 80%, em janeiro
de 2002: a lei velha era melhor.
A mesma marca "made in USA" está
no projeto incensado por Lula. Esse
projeto trata como criminoso aquele
surpreendido na posse de droga para
lúdico. E impõe, por considerá-lo criminoso, penas restritivas de direitos, como
prestação de serviços à comunidade.
Os idealizadores do projeto 7.134 destacaram, como conquista, o impedimento da prisão do portador de droga
para uso próprio. Esqueceram de dizer
que mantiveram a criminalização, com
outras sanções. Fizeram uma despenalização limitada, além da universal prática de aumentar penas aos traficantes,
num país acostumado a pescar narcos
pequenos.
Desde 1984, e quando mudada a parte
geral do Código Penal, a pena de prisão
contemplada na lei sobre drogas, de
1976, pode ser substituída por multa.
Além disso, a recente legislação que instituiu os Juizados Criminais Especiais
Federais reforçou a não-imposição da
prisão. Assim, o novo projeto vai alcançar apenas o reincidente, que continuará a não contar com o amparo do SUS e
a não receber informações por meio de
campanhas governamentais.
O projeto 7.134 distingue o usuário do
traficante pela "pequena quantidade"
apreendida. Ao contrário das legislações de outros países, abandonou o critério objetivo. Como é o policial quem
surpreende o usuário na posse, ocorrerão prisões em flagrante a seu critério.
Apenas numa segunda etapa haverá a
avaliação pelo juiz. Os tribunais superiores serão chamados a resolver conflitos sobre a tal "pequena quantidade". E
o Supremo Tribunal Federal fará o papel de legislador, estabelecendo esse critério: súmula vinculante?
No mesmo dia em que a Câmara
aprovou o projeto 7.134, o primeiro-ministro do Canadá, Paul Martin, membro
do Partido Liberal, encaminhou ao Parlamento o projeto de lei sobre drogas,
objeto de ampla discussão. Na sua entrega, o ministro da Justiça, Irwin Cotler, observou: "O consumo de drogas
deve ser desencorajado, mas não se deve emporcalhar, com uma marca criminal, a vida de uma pessoa surpreendida
com drogas para uso próprio".
Como se nota, a carta de Lula a Annan
foi esquecida, e os seus companheiros
gostaram da criminalização. Que tal explicitar no crachá do trabalhador comunitário, condenado por usar drogas, o
rótulo judicial de criminoso?
Wálter Fanganiello Maierovitch, 56, juiz aposentado do Tribunal de Alçada Criminal de São
Paulo, é presidente do Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais Giovanne Falcone. Foi secretário nacional antidrogas da Presidência da República (1999-2000).
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