São Paulo, sexta-feira, 21 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Um pacto para salvar São Paulo

CANDIDO MALTA CAMPOS FILHO, ERMÍNIA MARICATO, FLÁVIO VILLAÇA, LUIZ CARLOS COSTA e RAQUEL ROLNIK

A cidade de São Paulo passa por dramática crise. A violência urbana atinge a todos. Ela se desdobra não apenas em sequestros, roubos e assassinatos,mas também em questões urbanas, traduzidas em precariedade de moradia para milhões de paulistanos, que, por falta de recursos e pelos altos preços para locação e compra de casas, são compelidos a morar em favelas, cortiços e loteamentos clandestinos, no mais das vezes em distantes periferias.
A invasão das áreas de proteção aos mananciais se dá por essas mesmas razões. E boa parte dos congestionamentos também tem origem na necessidade de imensos deslocamentos para conectar áreas que são puramente dormitórios -no mais das vezes precários- aos centros de emprego, consumo e lazer da cidade. Os congestionamentos de tráfego infernizam a população e geram custos econômicos para todos, empresários e trabalhadores.
Dado o crescimento do número de automóveis em circulação e as dificuldades de ampliação expressiva do transporte coletivo, notadamente o metrô, esse problema, certamente o maior da metrópole, ameaça, com cada vez maior clareza, paralisá-la econômica e socialmente. As enchentes, que se repetem regularmente todo ano, não só contribuem para provocar colossais congestionamentos em regiões específicas, mas também atingem toda a metrópole quando as águas transbordam sobre as avenidas marginais mais importantes.
Por outro lado, vastas áreas da cidade dotadas de infra-estrutura e oportunidades de emprego, cultura, consumo e lazer passam hoje por processo vertiginoso de esvaziamento populacional, provocando a situação paradoxal que vivemos, pois, de acordo com os dados do Censo 2000, a cidade tem 400 mil unidades residenciais vazias na capital e em torno de 2 milhões de favelados!
Entendemos que, diante desse quadro, o Plano Diretor para a Cidade de São Paulo deve conferir especial ênfase à busca de solução para os principais problemas elencados acima -notadamente o de congestionamentos, o da moradia popular, o da perda dos mananciais e o do controle das enchentes-, com propostas que consigam enfrentá-los de forma incisiva, por meio da definição precisa de investimentos e de uma estratégia de controle de uso e ocupação do solo adequada aos objetivos propostos.


Para atender prioritariamente o centro expandido, calcula-se que vão ser necessários 150 km de metrô subterrâneo


Para tanto, é preciso introduzir no projeto mais claramente as prioridades de estruturação da cidade, como o repovoamento do centro e dos distritos consolidados da cidade e, por outro lado, a contenção da expansão e a qualificação da periferia.
Para isso é necessário explicitar uma estratégia de uso e ocupação de solo e de investimentos públicos que esteja rigorosamente atrelada a esses objetivos -investimentos prioritários no transporte coletivo e na recuperação da periferia, mecanismos fortes de indução do uso e da ocupação do solo para a classe média baixa e os pequenos comércios, serviços e indústrias, nas áreas consolidadas e, principalmente, no centro, na orla ferroviária e nos eixos de transporte coletivo.
A enorme ampliação prevista no potencial construtivo, que quase triplica o hoje oferecido pela lei de zoneamento em vigor, não está acompanhada de uma triplicação da capacidade de suporte infra-estrutural de circulação e, por isso, não apenas manterá o desbalanceamento atual, causa dos gigantescos congestionamentos que sofremos, como também o agravará.
A solução para os congestionamentos seguramente passa por uma ampliação expressiva da rede de metrô em prazo de dez a 15 anos, a fim de enfrentá-los de forma incisiva. Para atender prioritariamente o centro expandido, que se congestiona à razão de 350 veículos a mais por dia, calcula-se que vão ser necessários 150 km de metrô subterrâneo, além do metrô de superfície nas faixas ferroviárias. É preciso discutir como obter os US$ 15 bilhões que, mantidos os altos preços por quilômetro hoje cobrados, são necessários à sua implantação.
Os Orçamentos municipais e estadual estão muito longe de oferecer perspectivas concretas para montantes dessa ordem. É preciso discutir novas fontes que possibilitem um investimento da ordem de US$ 1 bilhão a US$ 1,5 bilhão por ano, considerando, por exemplo, que o pedágio urbano, a um valor que nos parece módico -de US$ 1 a US$ 1,5 por dia por uso dos automóveis-, seria suficiente para atender essa enorme demanda de recursos.
Além de se constituir em um instrumento que poderá substituir o rodízio, que está se esgotando e apenas alivia o problema, produziria recursos imprescindíveis para a implantação de solução de maior fôlego, qual seja, uma muito expressiva malha de metrô. Portanto um modelo de cidade mais europeu que norte-americano, com o sistema de circulação fundamentado no transporte coletivo.


No que tange ao zoneamento, é preciso explicitar mais claramente no plano a estratégia de sua revisão



No que se refere ao instituto jurídico da outorga onerosa (solo criado) -em boa hora prevista a sua aplicação para todas as cidades brasileiras pelo Estatuto da Cidade-, aplaudimos enfaticamente a sua inclusão no projeto de lei enviado à Câmara Municipal para apreciação. Sua principal finalidade deverá ser entendida como a de um instrumento dedicado a combater a especulação imobiliária com a verticalização excessiva, absorvedora que é de recursos para a ampliação de infra-estrutura de serviços públicos de suporte, especialmente de sistema viário para a circulação de automóveis, de custo proibitivo, atendendo principalmente as parcelas sociais mais abastadas em detrimento das prioridades das populações carentes, que vivem especialmente nas periferias.
Assim, o solo criado, bem como outros instrumentos de indução (como a edificação compulsória e o IPTU progressivo no tempo), deve ser aplicado focalizadamente, como forma de estímulo ao aumento de oferta de habitação de baixo custo em áreas bem servidas por infra-estrutura. E o destino dos recursos advindos da venda de potencial devem estar também rigorosamente atrelados aos investimentos definidos como urgentes e prioritários.
No que tange ao zoneamento, é preciso explicitar mais claramente no plano a estratégia de sua revisão. O projeto de plano com apenas três tipos básicos de zona -estritamente residencial, mista e predominantemente industrial- não atende aos anseios de qualificação ambiental da população paulistana. O plano deve definir um leque de opções a orientar as escolhas, a serem feitas pelos cidadãos por meio de planos locais de bairros participativos das comunidades. É de destacar ainda uma excessiva delegação de poderes do Legislativo ao Executivo do município -muitos, entendemos, inconstitucionais e esvaziadores do papel daquele Poder, que é definir normas, e deste, que é executá-las.
Finalmente, o Estatuto da Cidade nos permite romper com a tradição de planos diretores genéricos, incidindo mais concretamente, através de instrumentos de manejo do solo urbano, para lograr a implementação da cidade que queremos.
Nas mãos da Câmara Municipal está hoje a missão de aperfeiçoar o projeto apresentado e, para esta finalidade, apresentamos, de forma sucinta, nossa contribuição.
É imprescindível que o Plano Diretor seja formulado e aprovado em duas etapas, principalmente porque não há tempo hábil para desenvolver os necessários estudos técnicos imprescindíveis para a política habitacional e a política de uso do solo, articuladas com a de transporte, em prazo compatível com o regime de urgência.
A primeira etapa, que pode ser concluída de imediato, aprovaria legalmente as políticas, diretrizes e condições para a formulação completa do plano e, por outro lado, criaria a base legal para o uso imediato de instrumentos inovadores do Estatuto da Cidade (em situações que não dependam do Plano Diretor completo).
A segunda etapa criaria a oportunidade para o trabalho técnico e a mobilização social necessários à formulação mais precisa das políticas e de um conjunto consistente de planos, programas e normas específicas necessários para transformar os destinos da cidade em quadro de mais amplo debate democrático. É o que possibilitaria também ao plano a necessária dimensão metropolitana, fundada em uma articulação mais efetiva entre as políticas estaduais e municipais.
Ao mesmo tempo em que empenhamos desde já nossa colaboração para a formulação e a aprovação legal, tanto da primeira etapa como da segunda, que nos parece absolutamente necessária ao Plano Diretor, gostaríamos de convocar todos os cidadãos para apoiar o trabalho comum a ser desenvolvido nesse sentido na Câmara Municipal em conjunto com o Executivo.


Candido Malta Campos Filho, 65, é professor de planejamento e urbanismo da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo). Foi secretário do Planejamento do município de São Paulo (administrações Olavo Setubal e Reynaldo de Barros). Ermínia Maricato, 54, é professora titular e coordenadora do curso de pós-graduação da FAU-USP. Foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano do município de São Paulo (gestão Luiza Erundina). Flávio Villaça, 74, é professor de pós-graduação da FAU-USP. Luiz Carlos Costa, 66, é consultor e professor de planejamento urbano da FAU-USP. Foi coordenador do Plano Diretor de São Paulo (1981-84). Raquel Rolnik, 45, é professora e coordenadora do mestrado de urbanismo da PUC de Campinas e pesquisadora do Instituto Polis. Foi coordenadora do Plano Diretor de São Paulo (gestão Luiza Erundina).



Texto Anterior: Frases

Próximo Texto:
Painel do Leitor

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.