São Paulo, sexta-feira, 21 de julho de 2000


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Ainda há juízes em Brasília


Perpetram-se os maiores abusos a pretexto de combater a impunidade. Prisões preventivas são decretadas amiúde


ALBERTO ZACHARIAS TORON

O destaque dado à prisão do ex-senador Luiz Estevão e, sobretudo, às condições de sua cela -provida de uma latrina, uma pia e um cano apenas com água fria-, aliado ao fato de o delegado da Polícia Federal que a executou tê-la organizado "para que repórteres, fotógrafos e cinegrafistas tivessem o melhor ângulo" (Folha, dia 1º de julho), deixa patente a necessidade de exibir a aplicação de um castigo pronto, exemplar e marcado por requintes de um certo sadismo.
Exigência de uma sociedade sequiosa de representações fortes, nas quais a palavra não é suficiente, as prisões, com sua ampla cobertura pela imprensa, fornecem, como os autos de fé outrora, o suporte visual da argumentação vitoriosa. O espetáculo é definitivo. Trata-se, antes de mais nada, de uma apresentação pública de abjuração, da reconciliação e do castigo. Como advertiu o juiz francês Antoíne Grapon, membro do respeitado "Institut des Hautes Études sur la Justice", o "trial by media", onde a controvérsia é reduzida a um espetáculo muito mais próximo da arte de tourear do que da discussão razoável, "reforça o efeito de verdade em detrimento da verdade; a sedução em detrimento da argumentação" ("O Juiz e a Democracia", 1999, p. 79).
Nos anos 70, parafraseando uma campanha da CNBB, dizia-se que a opção preferencial do Direito Penal no Brasil eram os pobres. A crítica não se resumia à denúncia do caráter seletivo das leis penais e de seu sistema: polícia, tribunais e penitenciárias. Denunciavam-se os arbítrios praticados contra aqueles que, excluídos econômica, social e politicamente, seriam submetidos a maus-tratos (eufemismo para a tortura), escrachos públicos pela imprensa e, por fim, jogados em masmorras.
Com a crescente democratização da sociedade, ampliou-se a incidência do sistema penal. Não foram apenas novas leis criminalizando o "colarinho branco", mas órgãos de controle, como a polícia, procuradorias das diferentes Fazendas, ministérios públicos dos Estados e o federal, entre outros, com nova mentalidade e vontade política, que passaram a investigar condutas de outro segmento social até então tidas como "irrelevantes" ou "em aberto".
Mas, com a aparição dos "novos" personagens do mundo do crime, os abusos que antes eram objeto de viva repulsa passaram a ser não apenas tolerados, como, de certa forma, incentivados. Assim, prisões preventivas são requeridas e decretadas amiúde, empresários e homens de governo são publicamente escrachados, mesmo sendo meros suspeitos. Tem-se a impressão de que se cultiva uma ideologia da "hora e a vez da burguesia na polícia". Com essa forma de pensar, esquece-se de que, numa sociedade edificada sobre a base da dignidade humana, estampada na Constituição como valor reitor (artigo 1º, inciso III) e que presume a inocência do cidadão (artigo 5º, inciso LVII), não se pode conviver com a execração pública, degradação e linchamento moral dos cidadãos, ainda que abastados, como forma de exercício do poder. O que se combateu como opressão dirigida aos segmentos desfavorecidos, porque afrontoso aos direitos humanos, não pode vir validado e aplaudido como se fosse a "democratização do direito penal", que agora também atinge os ricos.
Aliás, dignas de nota são as infelizes declarações de um procurador da República em Brasília que, ao ver concedida a liminar no habeas corpus, colocando em liberdade o ex-senador, disparou que isso representava uma injustiça diante do fato de que há milhares de pobres presos por um simples "roubo de galinha". Convenha-se que a superação das mazelas do sistema penal não se dará com a reiteração de abusos.
O exemplo de independência dado pelo presidente do Tribunal Regional Federal de Brasília, juiz Tourinho Neto, ao determinar a soltura do ex-senador, é decisivo num momento em que, sob o manto legitimador da democracia, perpetram-se os maiores abusos a pretexto de combater a impunidade. Fosse o Judiciário refém da mídia, as garantias da magistratura não deveriam existir. Quem pretender punição antecipada sem o devido processo penal exigido na Constituição deveria ter em mente que o forte apelo emocional contido nessa direção, identifica-se com um tipo de irracionalismo no Direito Penal que prosperou na Alemanha nazista.


Alberto Zacharias Toron, 41, advogado criminalista, é professor de direito penal da PUC-SP, ex-presidente do Conselho Estadual de Entorpecentes (95/97) e membro fundador do Instituto do Direito de Defesa.



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