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DEMÉTRIO MAGNOLI
Cité Soleil, Rocinha
Na linguagem da cartografia, a
favela não existe. Nas plantas urbanas comuns do Rio de Janeiro, o
traçado das ruas interrompe-se nas favelas, como se os morros fossem áreas
verdes, não ocupadas pela mancha urbana.
Na esfera da paisagem, a favela é a
"outra cidade". As casas das favelas do
Rio há tempo trocaram o zinco, a madeira e o papelão pelos blocos e tijolos
baianos, mas se destacam no cenário
pela ausência de revestimento. É que
uma lei municipal estabelece cobrança de IPTU sobre imóveis com acabamento.
Na esfera do direito, a favela é a "cidade clandestina". A concessionária
de eletricidade urbana ameaça abandonar o mercado do Rio pois cerca de
um quinto da energia consumida é
desviada por meio de ligações clandestinas ("gatos"). A "TV Rocinha" e
negócios similares vendem assinaturas clandestinas de televisão a cabo
nos morros, difundindo sinais por
meio de "gatos".
No domínio das lendas urbanas, a
favela são os bárbaros que sitiam a cidade. Sob essa perspectiva, os "arrastões" aparecem como sinais do apocalipse: o dia em que o "morro" descerá
para invadir o "asfalto". Mas a dicotomia oculta as relações reais. O "morro" desce ao "asfalto" todos os dias para trabalhar, e o "asfalto" sobe diariamente o "morro" para comprar cocaína.
As favelas do Rio deveriam ser interpretadas à luz do conceito de soberania. Soberania é o estabelecimento do
direito positivo no interior de um território. A sua condição de existência é
o monopólio estatal da violência legítima. O Rio é uma única cidade, bipartida pela fronteira entre o território do
Estado e os territórios do tráfico de
drogas.
Forças brasileiras, em uniforme da
ONU, operam na favela haitiana de
Cité Soleil, reprimindo partidários do
governo constitucional deposto para
impor a autoridade de um governo
ilegítimo. Mas, nas favelas do Rio, o
Estado brasileiro cedeu o exercício da
violência a gangues de traficantes que
mantêm os moradores do "morro"
como reféns da sua autoridade privada. O mito do poder assustador das
gangues do "morro" serve de álibi ao
governo estadual e funciona como cínica justificativa para a manutenção
do status quo.
A verdade é que as gangues do tráfico, constituídas por poucas centenas
de criminosos, não passam do elo fraco do narcotráfico internacional. O
seu poder é do tamanho da renúncia
de poder do Estado. Dito de outro modo: é um subproduto da corrupção na
polícia e das redes de negócios ilegais
que se interconectam e percorrem as
instituições públicas.
Autoridades estaduais estufaram-se
de indignação patriótica diante de
uma reportagem sobre o "morro" feita por um jornal britânico e prometeram continuar a farsa interminável da
"guerra ao tráfico". Os moradores das
favelas têm direito a títulos definitivos
de posse da terra e dos imóveis, a endereços em logradouros oficiais com
representação nas plantas urbanas, ao
pleno usufruto dos serviços públicos,
a um plano de moratória prolongada
de cobrança de IPTU, a esquemas de
descontos no acesso a sinais de TV por
assinatura e, acima de tudo, à imposição permanente da ordem pública no
"morro". Eis um programa simples de
soberania nacional no Rio de Janeiro e
uma plataforma para a intervenção federal no Estado.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
magnoli@ajato.com.br
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