São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Cité Soleil, Rocinha

Na linguagem da cartografia, a favela não existe. Nas plantas urbanas comuns do Rio de Janeiro, o traçado das ruas interrompe-se nas favelas, como se os morros fossem áreas verdes, não ocupadas pela mancha urbana.
Na esfera da paisagem, a favela é a "outra cidade". As casas das favelas do Rio há tempo trocaram o zinco, a madeira e o papelão pelos blocos e tijolos baianos, mas se destacam no cenário pela ausência de revestimento. É que uma lei municipal estabelece cobrança de IPTU sobre imóveis com acabamento.
Na esfera do direito, a favela é a "cidade clandestina". A concessionária de eletricidade urbana ameaça abandonar o mercado do Rio pois cerca de um quinto da energia consumida é desviada por meio de ligações clandestinas ("gatos"). A "TV Rocinha" e negócios similares vendem assinaturas clandestinas de televisão a cabo nos morros, difundindo sinais por meio de "gatos".
No domínio das lendas urbanas, a favela são os bárbaros que sitiam a cidade. Sob essa perspectiva, os "arrastões" aparecem como sinais do apocalipse: o dia em que o "morro" descerá para invadir o "asfalto". Mas a dicotomia oculta as relações reais. O "morro" desce ao "asfalto" todos os dias para trabalhar, e o "asfalto" sobe diariamente o "morro" para comprar cocaína.
As favelas do Rio deveriam ser interpretadas à luz do conceito de soberania. Soberania é o estabelecimento do direito positivo no interior de um território. A sua condição de existência é o monopólio estatal da violência legítima. O Rio é uma única cidade, bipartida pela fronteira entre o território do Estado e os territórios do tráfico de drogas.
Forças brasileiras, em uniforme da ONU, operam na favela haitiana de Cité Soleil, reprimindo partidários do governo constitucional deposto para impor a autoridade de um governo ilegítimo. Mas, nas favelas do Rio, o Estado brasileiro cedeu o exercício da violência a gangues de traficantes que mantêm os moradores do "morro" como reféns da sua autoridade privada. O mito do poder assustador das gangues do "morro" serve de álibi ao governo estadual e funciona como cínica justificativa para a manutenção do status quo.
A verdade é que as gangues do tráfico, constituídas por poucas centenas de criminosos, não passam do elo fraco do narcotráfico internacional. O seu poder é do tamanho da renúncia de poder do Estado. Dito de outro modo: é um subproduto da corrupção na polícia e das redes de negócios ilegais que se interconectam e percorrem as instituições públicas.
Autoridades estaduais estufaram-se de indignação patriótica diante de uma reportagem sobre o "morro" feita por um jornal britânico e prometeram continuar a farsa interminável da "guerra ao tráfico". Os moradores das favelas têm direito a títulos definitivos de posse da terra e dos imóveis, a endereços em logradouros oficiais com representação nas plantas urbanas, ao pleno usufruto dos serviços públicos, a um plano de moratória prolongada de cobrança de IPTU, a esquemas de descontos no acesso a sinais de TV por assinatura e, acima de tudo, à imposição permanente da ordem pública no "morro". Eis um programa simples de soberania nacional no Rio de Janeiro e uma plataforma para a intervenção federal no Estado.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.

magnoli@ajato.com.br


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