São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2007

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O etanol: vale mais quem Deus ajuda?

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE


Em contraste com a entusiástica peregrinação do presidente em favor do etanol, o governo empaca como uma mula rabugenta


EM VERDADEIRA cruzada, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva espalha por este mundo afora a palavra redentora: "etanol".
E, de fato, o Brasil detém a mais desenvolvida tecnologia para o processamento da cana-de-açúcar e 300 milhões de hectares de terras adequadas ao plantio da cana não ocupadas por culturas de qualquer natureza ou por qualquer bioma ecologicamente sensível, protegido ou não por legislação de qualquer natureza. O uso de 10% dessas terras seria suficiente para substituir 10% da gasolina do mundo, o que é equivalente a quase o triplo da produção brasileira de petróleo. O potencial nacional é, portanto, imenso. Mas eis que, em contraste com a entusiástica peregrinação do presidente, o governo empaca como uma mula rabugenta.
Já em 2005, o Prêmio Nobel Alan MacDiarmid, em visita ao Brasil, afirmou que perderíamos a liderança no setor do etanol em poucos anos. Muitos especialistas do mundo inteiro concordam. Isso ocorreria apesar de o Brasil continuar dispondo de vantagens comparativas naturais, tais como "solaridade", regime de chuvas e disponibilidade de terras férteis. Qual é o mistério, então? Como ousam esses cientistas arrogantes denegrir nossa competência para competir num campo em que nos considerávamos e éramos tão bem-sucedidos?
Pois bem, eles tinham razão. Vejamos. A cana madura, além de água (aproximadamente 50%), apresenta dois terços de sua massa na forma de fibras (material lignocelulósico) e um terço como açúcar, que, por fermentação, é transformado em álcool.
Despontam tecnologias ditas de hidrólise que permitem converter o material lignocelulósico em açúcar. Ora, existem várias espécies agrícolas (milho, capim elefante, eucalipto etc.) que apresentam a mesma produtividade em biomassa por hectare que a cana. Como conseqüência, três são as possibilidades para o futuro.
1) As tecnologias de hidrólise não se tornam comercialmente viáveis. Assim, tudo fica como está e o etanol brasileiro mantém sua hegemonia.
2) A tecnologia de hidrólise é aplicada no Brasil e no exterior. O Brasil perde, em grande medida, sua predominância. Outros fatores, tais como logística, poderão vir a prevalecer.
3) A hidrólise é usada no exterior, e o Brasil, seja pela natural reação do empresário a mudanças tecnológicas radicais, seja por indolência e incompetência governamental, deixa de usá-la. Como conseqüência, o etanol brasileiro perde competitividade.
O governo e o empresariado brasileiros atuam em consonância com a primeira hipótese. Nada mudará neste melhor dos mundos possíveis. Recusam o ensinamento da história, que mostra repetida e inequivocamente que prevalece quem tem a melhor tecnologia, e não quem detém condições naturais vantajosas.
Os americanos se enquadram, muitos deles, na segunda categoria. Também é a posição de muitos pesquisadores e técnicos brasileiros. As tecnologias de segunda geração estão chegando, e o melhor que o Brasil pode fazer é se apropriar delas. E não há alternativa, senão um expressivo e sustentado esforço em pesquisa própria.
A terceira hipótese nos parecia até recentemente inverossímil. Mas eis que uma série de acontecimentos -e omissões- indicam que não estamos tão longe assim de perder tanto o mercado externo ainda por desenvolver quanto o próprio mercado.
O governo federal atribuiu a duas entidades a missão do desenvolvimento tecnológico, Embrapa e Petrobras. Ora, a Petrobras acaba de assinar convênio com a Novozymes, o que só pode ser compreendido como desistência de desenvolver e produzir enzimas para hidrólise e, com isso, assinar um pacto de dependência tecnológica permanente.
A enzima é o gargalo financeiro para a hidrólise. A atitude da Petrobras é um enigma, tanto mais que, em nível laboratorial embora, já se produzem enzimas para tais fins no Brasil.
Além disso, o esforço tecnológico dessa empresa é pífio. Meia dúzia de uns três ou quatro gatos pingados não conseguem montar um pequeno reator comprado.
A Embrapa, por outro lado, optou por uma organização que deverá coordenar pesquisas inexistentes nas 33 unidades que detêm. Dois anos após a manifestação de MacDiarmid, os EUA, além de incrementar as várias organizações de pesquisa de que já dispunha, criaram três novos institutos, com um orçamento total de US$ 250 milhões.
Enquanto isso, continuamos discutindo se vamos ou não criar uma organização de P&D para o etanol e não tomamos nenhuma decisão quanto a planejamento e logística.
Como se vê, têm razão os americanos, podem eles sempre contar com a preguiça e a inércia de um povo que acredita que vale mais quem Deus ajuda do que quem cedo madruga.

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE , 76, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro do Conselho Editorial da Folha .

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