São Paulo, quinta-feira, 21 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os crimes dos jovens de classe média

CLAUDIA COSTIN

Ao se indignar com a revoltante ação de rapazes de Brasília em férias na cidade de Porto Seguro, uma leitora da Folha afirmou que não podemos, neste caso, responsabilizar a falta de oportunidades pelo brutal crime. Parece fazer sentido, afinal estamos falando de jovens da classe média, com acesso a quase tudo que a sociedade oferece.
O mesmo pode se dizer dos jovens que confessaram ter matado o casal Manfred Albert e Marísia von Richthofen, no último dia 31; entre eles sua filha Suzane, de 19 anos. Também não excluídos eram os brasilienses que incendiaram o índio pataxó Galdino Jesus.
O que ocorre com esses jovens a quem pouco ou nada falta? Paradoxalmente, a explicação também remete ao universo de oportunidades oferecidas e à expectativa do jovem de "ser alguém", diferenciar-se, deixar sua marca.
Numa sociedade em que oportunidades são restritas a uma pequena parcela e em que não há nenhuma forma de educação para a paz, para que se perceba que o outro, mesmo que se vista diferentemente, fale com erros ou professe outro credo, também é detentor de direitos e merecedor de respeito -como preconiza o Relatório Delors, propondo bases para uma nova educação nos países da Comunidade Econômica Européia-, a inclusão excludente pode ser a raiz do problema. "Sou enquanto os outros não são, portanto sou melhor", pensa o jovem detentor desse privilégio.
Mas o jovem que se diferencia por "pertencer" encontra muitas vezes em sua família o suporte para valores que seus pares professam. O orgulho do filho valente que comete, digamos, brincadeiras e arruaças próprias da idade pode não ser generalizado, mas a firmeza da ação imediata para que ele não sofra as consequências de seus atos só encontra equivalência no rigor que se pede para atos de vandalismo e crimes dos filhos das camadas menos privilegiadas.
O mesmo sistema penitenciário é visto como ameno demais para os infratores pobres e cruel demais para nossos filhos. Da mesma maneira, a impunidade contra a qual todos nos levantamos não aparece como problema quando pequenas e grandes transgressões são cometidas por jovens de elite.
E a delinquência não começa grande. É, normalmente, precedida de inúmeros pequenos episódios de demonstração de valentia em que o outro, a vítima, sofre sustos, humilhações, ferimentos ou danos ao patrimônio resultantes de direção irresponsável de automóveis, pequenos furtos, brigas de gangues, desrespeito a policiais, ofensas a pessoas humildes ou portadoras de deficiências. A complacência da sociedade com esses pequenos ditadores, vistos como excêntricos ou dotados de graça, associa-se à questão da exclusão para conformar uma situação de profunda injustiça. Estamos criando monstros.


O mesmo sistema penitenciário é visto como ameno demais para os infratores pobres e cruel demais para nossos filhos


Complacência e amor não se confundem. É compreensível que famílias possam desejar um ambiente de conforto e carinho para seus filhos, mesmo que cometam atos nocivos, mas a colocação de seus rebentos acima da lei não se relaciona a nenhuma manifestação de afeto, e sim à vergonha social que não desejam viver. É, no limite, o que leva narcotraficantes do Acre, quando seus filhos cometem crimes, a sequestrar jovens seringueiros e induzi-los a assumir a culpa e a serem assassinados antes que se arrependam da "confissão" forjada.
Essa questão representa um desafio às famílias de elite, tão acostumadas a um sistema de acesso diferenciado e de direitos desiguais: como educar para a inclusão e para a responsabilização, como aumentar a auto-estima e as oportunidades de diferenciação pelos talentos, e não pela prepotência decorrente de privilégios próprios de uma sociedade injusta, sem cair na complacência?
Coloca, porém, um desafio ainda maior para as políticas públicas: por um lado, o da formulação de uma política de segurança que não estabeleça diferenças sociais na condenação de crimes e criminosos; por outro, a necessidade de trabalhar a convivência respeitosa e não excludente nas escolas e centros culturais voltados à juventude.
O Relatório Delors menciona quatro pilares a embasar o processo educacional na Comunidade Européia: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver junto e aprender a ser. Não basta transmitir conteúdos e metodologias de pesquisa às crianças e aos jovens, nem mesmo educá-los para maior autonomia intelectual, condição essencial para uma aprendizagem permanente.
É necessário prepará-los para viver em sociedade, respeitando regras que refletem a vontade codificada da maioria, atentos ao espaço e ao direito do outro e, sobretudo, embora os seres humanos tendam a supervalorizar suas qualidades e as do grupo a que pertencem e a alimentar preconceitos desfavoráveis em relação aos outros, capacitá-los para saudar a contribuição de cada grupo social como enriquecedora do ambiente.
Um ambiente que pode e quer ser plural -sem exclusão social e sem incluídos excludentes e impunes. Chega de juventude dourada!


Claudia Maria Costin, 46, mestre em economia pela FGV-SP, é presidente da Câmara Brasileira de Investidores em Energia Elétrica. Foi ministra da Administração Federal (governo FHC).


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