São Paulo, sábado, 21 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Há uma base objetiva para definir o conceito de raça?

NÃO

Os múltiplos significados da palavra raça

SÉRGIO DANILO PENA

Wittgenstein chamou a atenção para o fato de que palavras são ferramentas e têm múltiplos usos. "Raça" é, antes de tudo, uma palavra e pode ser usada de muitas maneiras. Uma delas é no sentido morfológico, fenotípico, denotando um conjunto de caracteres físicos (por exemplo, cor da pele ou textura do cabelo) que nos permite identificar indivíduos como pertencentes a um certo grupo. Assim, fala-se da raça negra, da raça branca etc. No Brasil, a palavra "cor" é usada como um sinônimo nesse contexto.
"Raça" pode também denotar origem em uma região do globo, assumindo o significado de "ancestralidade geográfica" -falamos então de uma raça africana, raça oriental etc.
Finalmente, "raça" pode ser usada em um sentido biológico, para se referir a uma população geneticamente diferenciada, isto é, uma subespécie. Para saber se há possibilidade de elaborar uma base objetiva para a definição do conceito de raça, devemos examinar essas várias acepções e tentar mapeá-las na realidade biológica e social humana.
Iniciemos com o sentido da palavra "raça" como sinônimo de subespécie. Hoje existe consenso, entre antropólogos e geneticistas, de que, sob este prisma biológico, raças humanas não existem. A espécie Homo sapiens é demasiadamente jovem e móvel para ter se diferenciado em grupos tão distintos. Ao estudar a variabilidade genética humana, vemos que de 90% a 95% dela ocorre dentro dos chamados "grupos raciais", e não entre eles. Cada um de nós é um ser humano único e igualmente diferente de qualquer outro ser humano, viva ele em Belo Horizonte, Tóquio ou Luanda.
Por outro lado, certamente raças existem como construções sociais e culturais, e o racismo é uma realidade, por mais perverso e detestável que seja.
Continuando a nossa desconstrução, examinemos agora o sentido morfológico de "raça". O IBGE, com base em autodeclaração, usa os termos branco, pardo e preto (e não negro) como categorias estruturais. Embora esses termos aparentemente refiram-se só à cor da pele, na verdade eles se relacionam a um complexo de pigmentação da pele, cor e textura do cabelo, cor dos olhos, forma do nariz e espessura dos lábios, que conjuntamente compõem o caráter "cor".
Cada um desses traços físicos é controlado por um número pequeno de genes diferentes, permitindo uma seleção rápida por pressões ambientais específicas das regiões geográficas, como radiação solar e temperatura. Esses genes ligados a características morfológicas representam uma porção ínfima do genoma e são completamente dissociados dos genes que influenciam inteligência, talento artístico ou habilidades sociais.
Outro sentido de "raça" é o de ancestralidade geográfica (africanos, ameríndios etc.). É essencial fazer uma distinção clara entre este significado e o morfológico discutido acima, pois os dois são frequentemente confundidos. As palavras "preto" e "negro" têm acepção morfológica, enquanto "afrodescendente" relaciona-se com ancestralidade.
O sociólogo Oracy Nogueira distinguiu estes dois conceitos como "raça de marca" (sentido morfológico) e "raça de origem" (sentido de ancestralidade). Ele destacou o fato de que a discriminação racial no Brasil era principalmente "de marca" (fenotípica), enquanto nos Estados Unidos era primordialmente "de origem" (por ancestralidade). A avaliação da "raça de marca" de uma pessoa é feita visualmente e é sempre subjetiva. Já a ancestralidade ou origem geográfica, após os avanços do Projeto Genoma Humano, pode ser quantificada objetivamente.
Implantamos em nosso laboratório exames de marcadores de DNA que permitem calcular um Índice de Ancestralidade Africana, ou seja, estimar para cada genoma humano qual proporção originou-se na África. Recentemente publicamos nos "Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA" um estudo demonstrando que no Brasil, em nível individual, a cor de um indivíduo ("raça de marca") tem muito baixa correlação com o Índice de Ancestralidade Africana. Isso quer dizer que, em nosso país, a classificação morfológica como branco, preto ou pardo significa pouco em termos genômicos e geográficos, embora a aparência física seja muito valorizada socialmente.
A interpretação genética dos achados de nossa pesquisa é que a população brasileira atingiu um nível muito elevado de mistura gênica. A esmagadora maioria dos brasileiros tem algum grau de ancestralidade genômica africana.
Poderia a nossa nova capacidade de quantificar objetivamente, através de estudos genômicos, o grau de ancestralidade africana de cada indivíduo fornecer um critério científico para avaliar afrodescendência? A minha resposta é um enfático não. Tentar usar testes genômicos de DNA para tal seria impor critérios qualitativos a uma variável que é essencialmente quantitativa e contínua.
A definição sobre quem é negro ou afrodescendente no Brasil terá forçosamente de ser resolvida na arena política. Do ponto de vista biológico, a pergunta nem faz sentido.


Sérgio Danilo Pena, 55, médico, doutor em genética humana, é professor titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e presidente do Gene - Núcleo de Genética Médica de Minas Gerais.


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