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TENDÊNCIAS/DEBATES
Há uma base objetiva para definir o conceito de raça?
NÃO
Os múltiplos significados da palavra raça
SÉRGIO DANILO PENA
Wittgenstein chamou a atenção para o fato de que palavras
são ferramentas e têm múltiplos usos.
"Raça" é, antes de tudo, uma palavra e
pode ser usada de muitas maneiras.
Uma delas é no sentido morfológico, fenotípico, denotando um conjunto de
caracteres físicos (por exemplo, cor da
pele ou textura do cabelo) que nos permite identificar indivíduos como pertencentes a um certo grupo. Assim, fala-se da raça negra, da raça branca etc. No
Brasil, a palavra "cor" é usada como um
sinônimo nesse contexto.
"Raça" pode também denotar origem
em uma região do globo, assumindo o
significado de "ancestralidade geográfica" -falamos então de uma raça africana, raça oriental etc.
Finalmente, "raça" pode ser usada em
um sentido biológico, para se referir a
uma população geneticamente diferenciada, isto é, uma subespécie. Para saber
se há possibilidade de elaborar uma base objetiva para a definição do conceito
de raça, devemos examinar essas várias
acepções e tentar mapeá-las na realidade biológica e social humana.
Iniciemos com o sentido da palavra
"raça" como sinônimo de subespécie.
Hoje existe consenso, entre antropólogos e geneticistas, de que, sob este prisma biológico, raças humanas não existem. A espécie Homo sapiens é demasiadamente jovem e móvel para ter se
diferenciado em grupos tão distintos.
Ao estudar a variabilidade genética humana, vemos que de 90% a 95% dela
ocorre dentro dos chamados "grupos
raciais", e não entre eles. Cada um de
nós é um ser humano único e igualmente diferente de qualquer outro ser humano, viva ele em Belo Horizonte, Tóquio ou Luanda.
Por outro lado, certamente raças existem como construções sociais e culturais, e o racismo é uma realidade, por
mais perverso e detestável que seja.
Continuando a nossa desconstrução,
examinemos agora o sentido morfológico de "raça". O IBGE, com base em
autodeclaração, usa os termos branco,
pardo e preto (e não negro) como categorias estruturais. Embora esses termos
aparentemente refiram-se só à cor da
pele, na verdade eles se relacionam a um
complexo de pigmentação da pele, cor e
textura do cabelo, cor dos olhos, forma
do nariz e espessura dos lábios, que conjuntamente compõem o caráter "cor".
Cada um desses traços físicos é controlado por um número pequeno de genes diferentes, permitindo uma seleção
rápida por pressões ambientais específicas das regiões geográficas, como radiação solar e temperatura. Esses genes
ligados a características morfológicas
representam uma porção ínfima do genoma e são completamente dissociados
dos genes que influenciam inteligência,
talento artístico ou habilidades sociais.
Outro sentido de "raça" é o de ancestralidade geográfica (africanos, ameríndios etc.). É essencial fazer uma distinção clara entre este significado e o morfológico discutido acima, pois os dois
são frequentemente confundidos. As
palavras "preto" e "negro" têm acepção
morfológica, enquanto "afrodescendente" relaciona-se com ancestralidade.
O sociólogo Oracy Nogueira distinguiu estes dois conceitos como "raça de
marca" (sentido morfológico) e "raça
de origem" (sentido de ancestralidade).
Ele destacou o fato de que a discriminação racial no Brasil era principalmente
"de marca" (fenotípica), enquanto nos
Estados Unidos era primordialmente
"de origem" (por ancestralidade). A
avaliação da "raça de marca" de uma
pessoa é feita visualmente e é sempre
subjetiva. Já a ancestralidade ou origem
geográfica, após os avanços do Projeto
Genoma Humano, pode ser quantificada objetivamente.
Implantamos em nosso laboratório
exames de marcadores de DNA que
permitem calcular um Índice de Ancestralidade Africana, ou seja, estimar para
cada genoma humano qual proporção
originou-se na África. Recentemente
publicamos nos "Proceedings of the
National Academy of Sciences of the
USA" um estudo demonstrando que no
Brasil, em nível individual, a cor de um
indivíduo ("raça de marca") tem muito
baixa correlação com o Índice de Ancestralidade Africana. Isso quer dizer
que, em nosso país, a classificação morfológica como branco, preto ou pardo
significa pouco em termos genômicos e
geográficos, embora a aparência física
seja muito valorizada socialmente.
A interpretação genética dos achados
de nossa pesquisa é que a população
brasileira atingiu um nível muito elevado de mistura gênica. A esmagadora
maioria dos brasileiros tem algum grau
de ancestralidade genômica africana.
Poderia a nossa nova capacidade de
quantificar objetivamente, através de
estudos genômicos, o grau de ancestralidade africana de cada indivíduo fornecer um critério científico para avaliar
afrodescendência? A minha resposta é
um enfático não. Tentar usar testes genômicos de DNA para tal seria impor
critérios qualitativos a uma variável que
é essencialmente quantitativa e contínua.
A definição sobre quem é negro ou
afrodescendente no Brasil terá forçosamente de ser resolvida na arena política.
Do ponto de vista biológico, a pergunta
nem faz sentido.
Sérgio Danilo Pena, 55, médico, doutor em genética humana, é professor titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG
(Universidade Federal de Minas Gerais) e presidente do Gene - Núcleo de Genética Médica de
Minas Gerais.
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