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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO
Natividade
ESTA FASE do ano é propícia
para suspender mágoas e lides, em busca de trégua e alívio. Época de cumprir os rituais
prazerosos dos votos e dádivas,
reafirmando laços de afeto e confiança. Para cristãos, um tempo em
que se capta a luminosidade original erguida sobre as águas profundas e escuras do universo primevo,
ato simbólico da criação divina.
Culminando as obras visíveis, o homem, posto no centro do mundo, é
investido da razão e dignidade naturais que o distinguem das feras e
o tornam apto a compreender e
imitar os desígnios divinos de justiça, bondade e amor. Um tempo em
que ele, frágil e obscurecido pelo
pecado, é salvo, mantendo o poder
de livre escolha e decisão responsável capazes de guiá-lo para a verdade, beleza e virtude.
Esses valores religiosos, éticos e
civis deixaram de ser incontestes.
Desde que se desvendou a finitude
do conhecimento e os limites em
que o homem faz sua própria história, depois que ele foi imerso nas
brumas do inconsciente e após ser
exorcizada a gênese da moralidade
ocidental, tornaram-se paradoxais
as idéias de consciência clara, autonomia do espírito, rigor ético. Viver nesse fio da navalha pode conduzir ao oposto do movimento
emancipador das injunções externas, à autonegação pela busca de
segurança em novas formas de tirania, compensando o vazio da personalidade.
De outro lado, essas grandes desilusões podem não despertar forças destrutivas.
No plano laico, nutrir o pensamento e fortalecer a
crítica pode represá-las e conter
seus danos. Na ordem cristã, a natureza humana falível é fonte de
bem-aventurança. O lapso do casal
prístino é reparável: seu pecado é
um erro da vontade (Eva aceita e
persuade; Adão decide e submete-se). Por isso mesmo, dotado de razão e livre-arbítrio, capaz de arrependimento, o homem é perfectível, socorrido pelo advento de Cristo. Embora fraca, a iluminação permanece no íntimo do pecador, que,
regenerado, reaviva o brilho primitivo.
Em contraste com o resgate humano, a danação de Satã é irremissível: não pode arrepender-se, não
tem perdão. O perfeito, belo e sábio
Lucifer -Portador de Luz, Estrela
da Manhã, Filho da Aurora- quer
subir na escala celeste, chegar acima do Mais Alto, mas cai por terra
e se transforma em perpétuo ser
infernal. Se a imperfeição humana
é correlativa à misericórdia divina,
a queda nas profundezas e sombras
da culpa pode reverter na ascensão
para a graça de Deus, "Lux Mundi".
Seu próprio Filho, Príncipe da
Luz, "abandonou os palácios dos
dias eternos e escolheu, conosco,
uma obscura casa de barro mortal".
Na descida à Terra, nesta manhã da
natividade de Cristo, "são vistos
querubins e serafins em armas,
com elmos e espadas, as asas estendidas em fileiras cintilantes"
(Milton).
MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às
quintas-feiras nesta coluna.
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