São Paulo, quinta-feira, 21 de dezembro de 2006

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MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Natividade

ESTA FASE do ano é propícia para suspender mágoas e lides, em busca de trégua e alívio. Época de cumprir os rituais prazerosos dos votos e dádivas, reafirmando laços de afeto e confiança. Para cristãos, um tempo em que se capta a luminosidade original erguida sobre as águas profundas e escuras do universo primevo, ato simbólico da criação divina.
Culminando as obras visíveis, o homem, posto no centro do mundo, é investido da razão e dignidade naturais que o distinguem das feras e o tornam apto a compreender e imitar os desígnios divinos de justiça, bondade e amor. Um tempo em que ele, frágil e obscurecido pelo pecado, é salvo, mantendo o poder de livre escolha e decisão responsável capazes de guiá-lo para a verdade, beleza e virtude.
Esses valores religiosos, éticos e civis deixaram de ser incontestes.
Desde que se desvendou a finitude do conhecimento e os limites em que o homem faz sua própria história, depois que ele foi imerso nas brumas do inconsciente e após ser exorcizada a gênese da moralidade ocidental, tornaram-se paradoxais as idéias de consciência clara, autonomia do espírito, rigor ético. Viver nesse fio da navalha pode conduzir ao oposto do movimento emancipador das injunções externas, à autonegação pela busca de segurança em novas formas de tirania, compensando o vazio da personalidade. De outro lado, essas grandes desilusões podem não despertar forças destrutivas.
No plano laico, nutrir o pensamento e fortalecer a crítica pode represá-las e conter seus danos. Na ordem cristã, a natureza humana falível é fonte de bem-aventurança. O lapso do casal prístino é reparável: seu pecado é um erro da vontade (Eva aceita e persuade; Adão decide e submete-se). Por isso mesmo, dotado de razão e livre-arbítrio, capaz de arrependimento, o homem é perfectível, socorrido pelo advento de Cristo. Embora fraca, a iluminação permanece no íntimo do pecador, que, regenerado, reaviva o brilho primitivo.
Em contraste com o resgate humano, a danação de Satã é irremissível: não pode arrepender-se, não tem perdão. O perfeito, belo e sábio Lucifer -Portador de Luz, Estrela da Manhã, Filho da Aurora- quer subir na escala celeste, chegar acima do Mais Alto, mas cai por terra e se transforma em perpétuo ser infernal. Se a imperfeição humana é correlativa à misericórdia divina, a queda nas profundezas e sombras da culpa pode reverter na ascensão para a graça de Deus, "Lux Mundi".
Seu próprio Filho, Príncipe da Luz, "abandonou os palácios dos dias eternos e escolheu, conosco, uma obscura casa de barro mortal". Na descida à Terra, nesta manhã da natividade de Cristo, "são vistos querubins e serafins em armas, com elmos e espadas, as asas estendidas em fileiras cintilantes" (Milton).


MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO escreve às quintas-feiras nesta coluna.

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