|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
JOSÉ SARNEY
Papai Noel,
SOU DOS POUCOS que acreditaram em você. Acho que não
só os meninos devem escrever-lhe. Os velhos têm brinquedos
a pedir, sonhos envoltos em chaminés e cegonhas. Mas esta é uma
carta de lembrança. E, como todas
as cartas de amor, devem rasgar-se.
Não vou perguntar-lhe o que você
acha do mundo de hoje, desde
quando em São Bento, debaixo de
minha rede, você deixou aquele
tambor de lata, feito pelo funileiro
Roque, que me encheu de felicidade, porque ele era mágico e belo.
Mas não posso lhe perdoar quando lhe pedi uma bicicleta e, de manhã, procurei-a pela casa inteira.
Minha mãe me convencia de que o
senhor disse que não podia comprá-la. Chorei porque você podia
tudo. Distribuía sonhos. Passei
dias sonhando montá-la em equilíbrio de rodas num conforto de selim e cordas, na ânsia de possuí-la
na doação do vento, alarmes e campainhas. A bicicleta que não tive invadiu de ambições meu pequeno
ser na busca de alegrias e artifícios.
Minhas lágrimas eram minhas,
mas nunca pude esquecer que você
fez minha mãe chorar e me dizer
que devia esquecer o sonho impossível naquela casa onde se rezava a
ladainha pedindo o perdão dos pecados e sem posses. Ela não veio.
Os tempos fizeram-me sumir da
infância. Crescia no mágico aprender as declinações de latim. Os pecados capitais, as virtudes teologais. Os pêlos iam aparecendo na
dentição do corpo, e me afastava da
bicicleta como ela outrora fugira de
mim. Nada de rodar pelas ruas sem
pedras, porque os anseios que
adulto me despertavam eram desejos que não rodam como as bicicletas. Papai Noel, agora eu não precisava mais de você. Terna e encostada, apartada de mim, a bicicleta se
entregava e eu a recusava.
Estou a escrever-lhe porque esse
fantasma renasce na busca de
montá-la. Ela passa rodando sem
parar e sem que eu possa segurá-la.
Porque as pernas com que eu a desejei hoje são velhas para esse desejo. O brinquedo que sonhei e que
você me negou, a vida me deu caminhos de tê-lo, pleno de enfeites,
fitas e brilhos. Mas jamais poderei
montá-la. É um sonho de rodas de
borrachas, involuntária e sólida
tarraxa. Papai Noel, de viver, vive-se. A vida inteira guardei essa mágoa de você e agora lhe escrevo,
lembrando o rosto triste de minha
mãe, as lágrimas que lhe escorriam
no rosto, pálida e sem coragem de
culpar-lhe pelo meu sonho de
quem não sabia que você só dá
brinquedo quando os pais podem
comprá-los. Compreendi seu sofrimento, sofrendo sem remissão. Esta é uma carta de perdão. Ela viaja
no tempo e enche de amor e fidelidade pelo sonho de todas as crianças sonharem com você. E eu sonhei. De viver, vive-se.
Do seu, Sarney
jose-sarney@uol.com.br
JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: São Paulo - Nelson Motta: Nosso mundo animal Próximo Texto: Frases
Índice
|