São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Organizar o contra-poder popular

FÁBIO KONDER COMPARATO

A ruína moral que se abateu sobre o governo Lula e o Partido dos Trabalhadores, abalando sobretudo o coração da juventude, não nos deve conduzir ao abismo da indiferença e do ceticismo. O que está em jogo é o bem comum de todos nós, e não apenas a reputação dos governantes e dos partidos. Importa, pois, antes de tudo, tirar do episódio a lição necessária, e saber introduzir, na prática e nas instituições políticas, as mudanças indispensáveis que o bom senso aconselha.


A ruína moral que se abateu sobre o governo Lula e o PT não nos deve conduzir ao abismo da indiferença


"É uma experiência eterna", advertiu Montesquieu em conhecida passagem do "Espírito das Leis", "que todo homem que detém o poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites". "Quem diria! Até a virtude tem necessidade de limites." Dura verdade, que os atuais Estados fundamentalistas têm sobejamente demonstrado.
Com efeito, dificilmente resistimos às seduções do poder, às suas pompas e às suas glórias. "Não há coisa que mais mude os homens", observou saborosamente o padre Vieira, "do que o descer e o subir; e o subir muito mais do que o descer".
Daí porque Montesquieu só encontrava remédio para a tendência universal ao abuso de poder político na montagem institucional de um mecanismo de poderes e contra-poderes. "É preciso que, pela própria disposição das coisas, o poder freie o poder." Já não se trata, portanto, de confiar cegamente nos homens, mas de saber que qualquer um de nós, quando no poder, é facilmente levado ao desatino, se não for convenientemente enquadrado pelas instituições políticas.
Acontece que o sábio francês raciocinava no quadro da ação política exercida por meio de representantes dos governados. Isso era, sem dúvida, um progresso em relação às práticas absolutistas do passado, mas revela-se hoje, em tempos de democracia participativa, algo de muito insuficiente.
Sabemos todos que o "Estado democrático de Direito", mencionado na Constituição, não passa, em nossa triste realidade, de uma peça de ficção política. A democracia pressupõe a atribuição efetiva (e não apenas simbólica) da soberania ao povo, devendo os órgãos estatais atuarem como meros executores da vontade popular.
Entre nós, esse esquema funciona em sentido inverso. A soberania pertence de fato aos governantes, que vivem numa espécie de estratosfera ou círculo celeste, onde são admitidos, tão-só, os que detêm algum poder econômico ou alguma influência junto ao eleitorado ou à opinião pública. Todos os demais cidadãos são confinados cá embaixo, como simples espectadores, pois os governantes de há muito lograram transformar a representação política em representação teatral: eles encenam, perante o povo, a farsa do rigoroso cumprimento da vontade eleitoral.
Em suma, temos todo um sistema de poder estatal, mas nenhuma forma organizada de contra-poder popular diante dele.
Ora, numa democracia autêntica, a ação política não se desenvolve apenas no nível do poder estatal, com o objetivo de conquistá-lo ou mantê-lo. Ela deve também exercer-se diretamente pelo próprio povo, perante todos os órgãos do Estado, não só para fiscalizá-los, denunciar os crimes, desvios, imoralidades e omissões, mas também para que o povo tome por si, e não por meio de representantes, as grandes decisões políticas, aquelas que empenham o futuro da coletividade em todos os níveis: local, regional e nacional.
Na esfera do Estado, são incontestavelmente os partidos políticos os grandes instrumentos de representação popular. Mas ainda não conseguimos criar um sistema organizado de agentes políticos que atuem, com o povo, como instrumentos de contra-poder perante os órgãos do Estado.
Vai, pois, aqui a idéia de criar um consórcio das organizações não-governamentais dedicadas, exclusivamente, à tarefa de atuar como agentes desse contra-poder popular.
O povo soberano teria assim, a seu serviço, um instrumento político capaz de promover protestos e campanhas de opinião pública, bem como de utilizar, da melhor maneira, os escassos mecanismos de denúncia e responsabilização dos agentes públicos existentes em nosso sistema jurídico: ações populares, ações civis públicas, representação ao Ministério Público por improbidade administrativa ou práticas criminosas em geral, denúncias de crimes de responsabilidade visando ao impeachment.
O consórcio poderia também incumbir-se de promover iniciativas populares legislativas e de apresentar, para os órgãos competentes, propostas de mudança constitucional ou de realização de plebiscitos e referendos.
A sua atividade completar-se-ia com a realização anual de um Fórum Nacional da Cidadania, em que seriam discutidas propostas concretas de atuação política.
O que importa, antes de tudo, é que saibamos lutar contra a nossa velha doença -a falta de civismo-, que o nosso primeiro historiador, frei Vicente do Salvador, já denunciava na primeira metade do século 17: "Nem um homem nessa terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular".

Fábio Konder Comparato, 67, advogado, doutor pela Universidade de Paris, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra.


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