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TENDÊNCIAS/DEBATES
Impropriedades
FÁBIO KONDER COMPARATO
Albert Camus observou certa
vez, com razão, que denominar incorretamente alguma coisa aumenta o
grau de infelicidade no mundo. Analogamente, pode-se dizer, com absoluta
segurança, que a errônea qualificação
jurídica de um fato aumenta o grau de
injustiça no mundo.
A atual polêmica sobre as atividades
dos integrantes do MST bem ilustra essa
verdade. Se a defesa do status quo agrário é feita em privado com capangas armados, ela se apresenta, publicamente,
envolta em deliberada confusão terminológica.
Comecemos por assinalar a distinção
básica entre trabalhadores agrícolas e
proprietários rurais. Aqueles podem ser
assalariados ou não e, neste último caso,
dispor ou não da propriedade de um
fundo agrícola. Quanto a estes, pessoas
físicas ou jurídicas, limitam-se a possuir
a terra, deixando que o seu cultivo seja
feito por outrem, trabalhadores subordinados ou arrendatários. O primeiro e
fundamental direito dos trabalhadores
agrícolas -como o de todo trabalhador, aliás- é obviamente o direito ao
trabalho. Ele consiste, como declarado
no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 6º, alínea 1), ratificado pelo Brasil, na "possibilidade de ganhar a vida mediante um
trabalho livremente escolhido ou aceito". Ou seja, o equivalente à liberdade
de iniciativa para os empresários.
Ora, para os trabalhadores agrícolas
que não aceitam a condição de assalariados, a satisfação do direito fundamental ao trabalho exige, necessariamente, o reconhecimento do direito,
também fundamental, de acesso à propriedade ou, pelo menos, à posse permanente da terra. O que supõe a adoção
de uma política pública voltada à consecução desse resultado. É a reforma agrária. O Estado brasileiro, por conseguinte, não é livre de fazer ou deixar de fazer
a reforma agrária. Trata-se de um dever
fundamental dos poderes públicos
-não só do Executivo, como ainda do
Legislativo. E cumpre ao Judiciário e ao
Ministério Público zelar pelo constante
respeito a esse mandamento constitucional.
O primeiro e fundamental direito dos trabalhadores agrícolas é obviamente o direito ao trabalho
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No quadro da política de reforma
agrária, é indispensável distinguir, na
propriedade agrícola, o direito fundamental do simplesmente ordinário.
Quando o domínio fundiário não é indispensável à sobrevivência do proprietário e de sua família, não existe o direito fundamental declarado no art. 5º, inciso 22, da Constituição. O proprietário,
nesse caso, é obrigado a dar à terra agrícola a sua destinação social (mesmo artigo, inciso 23).
Considerada, portanto, a atual polêmica sobre o MST à luz desses princípios, três conclusões impõem-se.
Em primeiro lugar, nas ações de manutenção ou de reintegração de posse
de fundos agrícolas, o juiz não pode interpretar o art. 928 do Código de Processo Civil fora do quadro constitucional, deferindo a expedição do mandado
liminar, sem verificar se o réu ou os réus
são titulares de um direito fundamental
de propriedade, ou simplesmente de
um direito ordinário. Para tanto, deve o
magistrado determinar que o autor justifique preliminarmente o seu pedido,
com a citação da parte contrária, para
produzir as suas alegações.
Em segundo lugar, é aberrante, como
tem decidido reiteradas vezes o Superior Tribunal de Justiça, qualificar a
ação coletiva dos trabalhadores sem terra, na defesa de seu direito fundamental
ao trabalho, como prática do crime de
quadrilha ou bando. Será preciso lembrar que era exatamente essa a qualificação dada por alguns tribunais, no século 19, à organização dos operários fabris em sindicatos?
Em terceiro lugar, a medida provisória nº 2.183-56, de 24 de agosto de 2001,
tornada permanente por força da
emenda constitucional nº 32, é perdidamente inconstitucional. Ela excluiu da
reforma agrária os imóveis rurais "objeto de esbulho possessório ou invasão
motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo". Ora, os pressupostos do cumprimento do dever público de fazer a reforma agrária foram
estabelecidos, de modo expresso e completo, no art. 186 da Constituição. Entre
eles não se inclui o fato referido na citada medida provisória. Tratou-se, portanto, de uma grosseira tentativa de
emendar a Constituição por via de decreto executivo.
Felizmente, nessa matéria, o governo
Lula, ao contrário do que vem fazendo
na desastrada reforma previdenciária,
tem respeitado a Constituição, sem ceder à formidável pressão que os grandes
proprietários rurais veiculam através
dos meios de comunicação de massa.
Fábio Konder Comparato, 66, jurista, doutor pela Universidade de Paris, é professor titular da
Faculdade de Direito da USP e doutor honoris
causa da Universidade de Coimbra. É autor de "A
Afirmação Histórica dos Direitos Humanos" (ed.
Saraiva), entre outras obras.
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