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Diálogo de surdos
Pressões do Ocidente para reverter sentença de apedrejamento para iraniana expõem diferenças com o islã e incompreensão mútua
A pressão sobre o governo de
Teerã para reverter a condenação
à morte por apedrejamento da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani pelo crime de adultério é emblemática das diferenças entre o
Ocidente e o mundo islâmico.
De um lado, evocam-se os direitos humanos contra a barbárie religiosa. Do outro, afirma-se que
não é dado aos homens questionar as leis estabelecidas por Deus.
Resulta um diálogo de surdos.
A incompreensão mútua converte-se numa profecia autorrealizável, na qual cada lado procura
defender-se preventivamente das
supostas más influências do outro, promovendo regras no mínimo discutíveis.
O Afeganistão dos Taleban, por
exemplo, além de implodir estátuas de Buda, proíbe música, computadores, TVs e, sabe-se lá por
que, pipas e o jogo de xadrez.
Ainda que mascaradas sob um
verniz civilizacional, países europeus vêm aprovando leis que banem o uso de símbolos islâmicos
em espaços públicos. Parecem esquecer-se de que a Declaração
Universal dos Direitos do Homem
inclui o direito a ter uma religião
-e portanto de demonstrá-la através dos cultos e ícones próprios.
Tal situação levou o ideólogo
conservador norte-americano Samuel Huntington a forjar o termo
"choque de civilizações" para referir-se à tensão entre os dois
mundos. A análise de Huntington
peca por reduzir uma cadeia complexa de elementos políticos, históricos, econômicos e sociais aos
aspectos mais visíveis da cultura
-notadamente a religião- e conferir-lhe o caráter de destino.
Daí não decorre, porém, que fatores etnográficos não tenham um
importante papel nas desavenças.
Consideradas apenas as prescrições religiosas, o islã é até mais
tolerante para com adúlteros do
que a Bíblia judaico-cristã. Enquanto o Alcorão determina uma
pena de cem chibatadas, o Deuteronômio estabelece a morte por lapidação. Na verdade é o "Hadith",
a narrativa dos atos do profeta,
que, com o Alcorão, constitui a base da "sharia", a lei islâmica, que
autoriza, segundo algumas interpretações, o apedrejamento.
A diferença entre as visões preponderantes no Ocidente e no islã
está, portanto, muito mais na forma de posicionar-se em relação à
religião do que no conteúdo dos livros canônicos.
Enquanto a Europa e as Américas assistiram, ao longo dos últimos três ou quatro séculos, a uma
progressiva laicização das instituições e mesmo da vida, boa parte do mundo muçulmano permaneceu fiel a seus textos sagrados.
A grande maioria dos ocidentais não chegou ao ponto de negar
a existência de Deus -e dificilmente chegará-, mas relegou o
sagrado a uma espécie de limbo.
Um europeu típico lê pouco a
Bíblia e, felizmente, nem cogita de
implementar as passagens que
mandam apedrejar adúlteros.
É desse discernimento iluminista que o islã se ressente. Lá, com
uma frequência perturbadora, Estado e religião se confundem -a
Constituição do Irã o define como
uma República teocrática- e tomam-se ao pé da letra as passagens do livro sagrado que designam os "infiéis" como gente de segunda categoria.
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