São Paulo, quinta-feira, 22 de julho de 2010

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Diálogo de surdos

Pressões do Ocidente para reverter sentença de apedrejamento para iraniana expõem diferenças com o islã e incompreensão mútua

A pressão sobre o governo de Teerã para reverter a condenação à morte por apedrejamento da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani pelo crime de adultério é emblemática das diferenças entre o Ocidente e o mundo islâmico.
De um lado, evocam-se os direitos humanos contra a barbárie religiosa. Do outro, afirma-se que não é dado aos homens questionar as leis estabelecidas por Deus. Resulta um diálogo de surdos.
A incompreensão mútua converte-se numa profecia autorrealizável, na qual cada lado procura defender-se preventivamente das supostas más influências do outro, promovendo regras no mínimo discutíveis.
O Afeganistão dos Taleban, por exemplo, além de implodir estátuas de Buda, proíbe música, computadores, TVs e, sabe-se lá por que, pipas e o jogo de xadrez.
Ainda que mascaradas sob um verniz civilizacional, países europeus vêm aprovando leis que banem o uso de símbolos islâmicos em espaços públicos. Parecem esquecer-se de que a Declaração Universal dos Direitos do Homem inclui o direito a ter uma religião -e portanto de demonstrá-la através dos cultos e ícones próprios.
Tal situação levou o ideólogo conservador norte-americano Samuel Huntington a forjar o termo "choque de civilizações" para referir-se à tensão entre os dois mundos. A análise de Huntington peca por reduzir uma cadeia complexa de elementos políticos, históricos, econômicos e sociais aos aspectos mais visíveis da cultura -notadamente a religião- e conferir-lhe o caráter de destino.
Daí não decorre, porém, que fatores etnográficos não tenham um importante papel nas desavenças.
Consideradas apenas as prescrições religiosas, o islã é até mais tolerante para com adúlteros do que a Bíblia judaico-cristã. Enquanto o Alcorão determina uma pena de cem chibatadas, o Deuteronômio estabelece a morte por lapidação. Na verdade é o "Hadith", a narrativa dos atos do profeta, que, com o Alcorão, constitui a base da "sharia", a lei islâmica, que autoriza, segundo algumas interpretações, o apedrejamento.
A diferença entre as visões preponderantes no Ocidente e no islã está, portanto, muito mais na forma de posicionar-se em relação à religião do que no conteúdo dos livros canônicos.
Enquanto a Europa e as Américas assistiram, ao longo dos últimos três ou quatro séculos, a uma progressiva laicização das instituições e mesmo da vida, boa parte do mundo muçulmano permaneceu fiel a seus textos sagrados.
A grande maioria dos ocidentais não chegou ao ponto de negar a existência de Deus -e dificilmente chegará-, mas relegou o sagrado a uma espécie de limbo.
Um europeu típico lê pouco a Bíblia e, felizmente, nem cogita de implementar as passagens que mandam apedrejar adúlteros.
É desse discernimento iluminista que o islã se ressente. Lá, com uma frequência perturbadora, Estado e religião se confundem -a Constituição do Irã o define como uma República teocrática- e tomam-se ao pé da letra as passagens do livro sagrado que designam os "infiéis" como gente de segunda categoria.


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