São Paulo, terça-feira, 22 de agosto de 2000


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O "homem transbordante"


Nietzsche desejava ser músico, compositor, mas não conseguiu; incapaz de fazer música com sons, fez música com palavras


RUBEM ALVES

Será que a loucura pode ser provocada por excesso de lucidez? Douglas R. Hofstadter, no seu livro "Gödel, Escher, Bach" (Prêmio Pulitzer), brinca com a idéia de um computador cujo hardware não é capaz de suportar o seu software e se desintegra ao tentar executá-lo. Talvez isso não possa acontecer com computadores, mas possa acontecer com seres humanos: a estrutura física nervosa, não sendo capaz de suportar a riqueza da vida mental que nela existe, se desintegra como um vaso que se quebra por não conseguir conter a exuberância da fonte.
Nietzsche tornou-se insano no início do ano de 1889 e morreu 11 anos depois, no dia 25 de agosto de 1900, há cem anos, portanto. Seu corpo foi frágil demais para conter sua mente imensa.
Nietzsche é o filósofo que mais amo. Dizia ele só amar os livros escritos com sangue. Seus textos são escritos com sangue, sangue sob a forma de palavras. Bem que ele poderia dizer: "Hoc est corpus meum", isso é o meu corpo. Por isso eu o leio antropofagicamente. É impossível lê-lo e continuar o mesmo. Suas palavras não são para a cabeça, são para as entranhas. Eu o sinto circulando no meu corpo. E eu sei que isso é assim porque, ao lê-lo, ponho-me a sorrir, sou possuído pela alegria, viro criança. O que está muito de acordo com as suas intenções.
Filósofo? "Sou um discípulo do filósofo Dionísio", confessou no prefácio de "Ecce Homo". Mas Dionísio é tudo, menos filósofo. É o deus do vinho, do êxtase, da música que se apossa do corpo inteiro, por oposição a Apolo, que se contenta com o olhar distante. Um professor da universidade de Berlim, após ler os textos de Nietzsche, sem ter entendido coisa nenhuma, escreveu-lhe aconselhando-o a tentar um outro estilo: ninguém leria as coisas que ele escrevia. Mas o seu estilo, precisamente, é o essencial de sua filosofia.
Nietzsche desejava ser músico. Tentou ser compositor; não conseguiu. Incapaz de fazer música com sons, fez música com palavras, o que constitui para os filósofos acadêmicos um problema sem solução, semelhante ao da quadratura do círculo. Pode-se representar um círculo por meio de quadrados? Pode-se comunicar a música da prosa nietzscheana por meio do estilo acadêmico, que só entende a letra da linguagem, sendo surdo para a sua música? Filósofo? "Talvez eu seja apenas um bufão", ele observou. Ele se sabia um exilado, clandestino: "Assim, para fora da minha verdade-loucura, eu mergulhei... Que eu seja exilado de toda a verdade! Somente um tolo! Somente um poeta".
Sua filosofia nasceu da doença. É ele mesmo quem diz: "Somente a minha doença me levou à razão". Confissão que parece dar razão aos que não o conseguem digerir. E concluem: "Filosofia doente, portanto". Errado. Doença, a possibilidade da morte, nos conduz aos pensamentos essenciais. "Tenho a lucidez de quem está para morrer", dizia Fernando Pessoa no "Tabacaria". E Nietzsche explica: "Eis como me aparece agora aquele longo período de doença: como se eu tivesse redescoberto a vida, inclusive a mim mesmo; eu provei todas as coisas, as boas e mesmo as pequenas, de uma forma como os outros não podem facilmente provar. Transformei, então, a minha vontade de saúde, minha vontade de viver, numa filosofia".
Nietzsche declarou que um dos seus grandes prazeres, ao lado das longas caminhadas, era a música de Schumann. Schumann era um especialista em miniaturas: "Cenas da Infância", "Cenas da Floresta", "Carnaval". Colagem de pequenas peças, cada uma completa em si mesma. Quem não conhece a "Träumerei"? Pois o seu estilo é igual ao de Schumann. O seu gosto pelos aforismos e textos curtos são expressão do seu horror aos sistemas que pretendem abarcar tudo. A busca de um sistema lhe parecia falta de integridade. "Assim Falou Zaratustra" bem que poderia ter o título de "Cenas", talvez mesmo de "Carnaval", tendo o "monstro dionisíaco chamado Zaratustra" como protagonista central.
Zaratustra, seu herói, é uma encarnação plástica do que ele desejava ser. Descendo das montanhas onde passara dez anos de solidão, Zaratustra se encontra com um eremita que vivia numa floresta. Passara por ele dez anos antes, quando subia. O eremita se espanta: "Sim, reconheço Zaratustra", ele diz. "Seus olhos são puros, em sua boca não se esconde nenhum desgosto. E não anda ele como um dançarino? Zaratustra mudou, Zaratustra se tornou uma criança. Zaratustra ficou iluminado."
"Anuncio o "Übermensch'", ele proclama. "Super-homem": traíram os tradutores. Nada mais distante do espírito de Nietzsche. Um homem "super" é apenas um homem com suas qualidades hipertrofiadas, a mesma mediocridade tornada "super". O "über", em Nietzsche, corresponde ao nosso "trans", como em transbordar. "As cisternas contêm; as fontes transbordam", dizia William Blake, o Nietzsche inglês. A exuberância não pode ser contida. E assim traduzo eu o "Übermensch" de Nietzsche como o "homem transbordante". Mas Nietzsche não sonhava com tamanhos, sonhava com metamorfoses: é preciso que as cisternas se transformem em fontes!
E quem é esse "homem transbordante" que ele anuncia?" Está lá, na sua curta e poética "fenomenologia do espírito" a que ele deu o nome de "metamorfoses do espírito". Primeiro momento: o homem é um camelo, animal reverente, que se ajoelha diante de uma vontade estranha que coloca cargas em suas costas. Sua palavra: "obedeço". Segundo momento, primeira metamorfose: o camelo se transforma em leão, o animal de força e vontade, cuja palavra é "Eu quero"! O leão se defronta com um dragão que tem o corpo coberto com escamas douradas. Em cada uma delas está gravado "tu deves". O leão luta com ele e o mata. Chega, finalmente, o terceiro momento, a última metamorfose, o ponto de chegada: o leão se transforma numa criança. Porque uma criança é exuberância, transbordamento de vida, brinquedo que não acaba. Mais tarde ele irá dizer que "o máximo de maturidade que um homem pode atingir é quando ele tem a seriedade que têm as crianças quando brincam".
Suas cenas, como em Schumann, poderiam ter o nome de "Cenas da Infância", variações musicais sobre o tema "criança". O que Nietzsche deseja é nos seduzir a nos tornar crianças para brincar com ele.


Rubem Alves, 66, educador, escritor e psicanalista, é professor emérito da Unicamp. É autor de "O Amor que Acende a Lua", "Concerto para Corpo e Alma", "Entre a Ciência e a Sapiência" e livros infantis. (www.rubemalves.com.br)



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