São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Liberdade e fidelidade

HÉLIO BICUDO

Antes mesmo da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, em seu artigo XIX, dispõe que "todo o homem tem direito à liberdade de opinião e expressão", e mais, que "esse direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras", a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem já estabelecia que toda a pessoa tem direito à liberdade de opinião e de expressão e difusão do pensamento por qualquer meio (artigo IV). Estávamos, então, no final dos anos 40.
Bem mais tarde, a Convenção Americana de Direitos Humanos, subscrita em São José da Costa Rica, em 22/11/ 1969, e ratificada pelo Brasil, em 25/9/ 1992, determinava que o direito à liberdade de expressão compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda índole, sem nenhuma consideração. Esse direito não pode estar sujeito à censura prévia, senão a responsabilidades ulteriores devidamente fixadas por lei. É um direito que não pode ser restringido sequer por vias ou meios indiretos.
O direito à liberdade de expressão se constitui num dos fundamentos mesmos do Estado democrático de Direito. É que, para o desenvolvimento progressivo de uma democracia estável, não basta que se façam eleições livres. Devem ser tomados em linha de conta outros elementos inerentes à sociedade democrática, como o reconhecimento e o respeito aos direitos humanos, independência e eficácia do Legislativo e do Judiciário, um sistema de partidos que facilite linhas abertas de comunicação entre os cidadãos e os líderes de uma sociedade civil ativa. Sobretudo é indispensável a liberdade de expressão e um acesso à informação de amplo alcance, para assegurar que todos os cidadãos possam se sentir realmente livres.
Episódio recente, em que, por injunções pretensamente qualificadas pelo princípio da fidelidade partidária, impediu-se a livre manifestação de uma senadora do PT, em ato de suas atribuições como representante de seu Estado, no Senado da República, merece profunda reflexão.


Resoluções de partidos políticos ou de suas bancadas não podem afrontar o direito de liberdade de expressão


A fidelidade partidária guarda claros limites e não pode ir além dos princípios democráticos que resguardam a responsabilidade das pessoas no que respeita à liberdade de expressão. Assim, resoluções de partidos políticos ou de suas bancadas nos parlamentos não podem afrontar o direito de liberdade de expressão. A obediência partidária não pode ter espaços além dos princípios adotados por um partido político em seus estatutos. Obediência não deve ser entendida como submissão, que esmaga o pensamento e só tem lugar nos sistemas totalitários.
Se a divergência não viola os princípios partidários, não há como sufocá-la; porque, então, estar-se-á violando claramente um direito humano protegido por convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, as quais, nos termos da Constituição Federal, que também elenca entre os direitos fundamentais o de liberdade de expressão (artigo 5º, incisos IV, VIII e IX), constituem-se em normas de nosso direito interno, "ex vi" do disposto no parágrafo 2º, do seu artigo 5º. E, dessa maneira, não podem ser descartadas como se nada fossem, deixando imperar interesses que correm à margem dos partidos.
As violações dos direitos humanos, considerados interdependentes e indivisíveis pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, realizada em Viena em 1993, vêm se avolumando, não obstante tudo. Os Estados do Primeiro Mundo entendem, muitas vezes, que estão acima do bem e do mal e se recusam a aceitar tratados e convenções internacionais que buscam o reconhecimento "erga omnes" dos direitos humanos.
É um mau exemplo, do qual o Brasil deve se afastar, desde que procuramos construir um verdadeiro Estado democrático de Direito. Aqui temos muito a fazer, pois nem sequer os direitos civis e políticos se abrigam sob o poder daqueles que, neste ou naquele momento, detêm o poder. Mas a verdade é que o poder de Estado não pode ir além dos direitos fundamentais, sob pena de estar em risco a existência da democracia.
Que o ocorrido no Senado da República sirva -à luz de princípios internacionais aceitos pelo Brasil e pela própria Constituição cidadã, de 1998- para uma reflexão da maior relevância sobre limites à liberdade de expressão na condução da coisa pública.


Hélio Bicudo, 80, jornalista e advogado, é vice-prefeito do município de São Paulo e presidente da CMDH-SP. Foi deputado federal pelo PT-SP (1990-94 e 1995-98) e presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos)


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