São Paulo, Terça-feira, 23 de Fevereiro de 1999
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Duras opções


Por que nos incomoda tanto ouvir do FMI que precisamos de um ajuste, se ele vem sendo buscado nos últimos dez anos?


FRANCISCO GROS

O país vem tendo enorme dificuldade em aceitar um entendimento com o Fundo Monetário Internacional. Velhos fantasmas ressurgem. Qualquer iniciativa do governo, por mais saudável, é imediatamente vista como imposição do Fundo. A cerimônia de comunicação de um entendimento preliminar com a equipe técnica do FMI é considerada rendição nacional. Gritos de independência e soberania são lançados ao ar. "Às armas, cidadãos."
É preciso entender que o FMI só está aqui a convite nosso. As "imposições" nada mais são do que precauções saudáveis por parte de um financiador prudente, preocupado em assegurar o retorno dos empréstimos concedidos e proteger o capital de seus acionistas -entre eles, o Brasil. A aceitação dessas condições não deve ser vista como perda de soberania. Até porque, como qualquer devedor em potencial, se o país não gostar das condições do empréstimo, nada o força a aceitá-lo.
O mundo está cada vez mais globalizado, queiramos ou não. Neste mundo globalizado, há um consenso cada vez mais amplo quanto ao que é aceitável. Os exemplos se multiplicam. Para ter acesso aos mercados de capital, sejam eles de dívida ou de ações, as empresas precisam publicar suas contas de acordo com o Gaap (padrão norte-americano de contabilidade, geralmente aceito). As empresas que não se dispuserem a adotá-lo continuarão funcionando, produzindo, vendendo serviços, mas sem ter acesso aos capitais mais baratos que os mercados globais oferecem aos que aceitam as regras do jogo.
O exemplo da Daimler-Benz, há cerca de um ano, é ilustrativo. Em que pesem a tradição e a seriedade da empresa e dos padrões de contabilidade alemães, a companhia adotou o padrão do Gaap; só assim poderia se listar na Bolsa de Nova York e obter os capitais mais baratos de que necessita para competir globalmente. A decisão foi tomada após avaliação dos custos e benefícios, não por tradição, justiça ou orgulho dos atores envolvidos. E é bom que seja assim quando questões de economia e competitividade estão sendo tratadas.
Conceitos similares se aplicam a bancos. Pelos padrões de Basiléia, eles devem manter um nível de capitalização de pelo menos 12% dos ativos. Certo ou errado, esse padrão se tornou universalmente aceito e é hoje usado para medir a solidez de instituições financeiras em qualquer lugar do planeta. Quem não o aceitar e decidir que outra regra melhor lhe convém será sumariamente excluído do convívio dos mercados.
No campo fiscal, as regras que estão prevalecendo são as do Tratado de Maastricht, assinado pelos países da Comunidade Européia: seus membros devem manter déficits fiscais abaixo de 3% e endividamento abaixo de 60% do PIB. Quem imaginaria, há alguns anos, que países soberanos aceitariam limitações dessa natureza, aparentemente inatingíveis para muitos? Fizeram-no, no entanto, de bom grado, por entenderem que a alternativa de ficar fora do jogo era por demais custosa.
Finalmente, no campo monetário, constata-se uma padronização cada vez maior. Alguns países optaram por se alinhar ao dólar norte-americano. A Europa se uniu em torno do euro, que caminha celeremente para se tornar um polo monetário da maior importância. É de notar que, do volume das emissões de dívida realizadas neste início de ano, metade foi denominada em euros. Não se sabe ainda qual será a moeda dominante na Ásia (o iene ou o yuan), mas não resta dúvida de que uma delas acabará por adquirir uma posição de destaque na região.
Abrir mão da moeda é uma decisão extraordinariamente difícil, não só pelas implicações macroeconômicas, mas pelo que exige de ajustes prévios. No caso do Brasil, esses ajustes produziriam um verdadeiro cataclismo. Mas os argentinos e, logo atrás, os mexicanos estão cada vez mais convencidos de que é uma decisão que se impõe, sob pena de continuarem tendo de competir pagando um custo de capital de duas a três vezes superior ao pago por seus concorrentes do Primeiro Mundo.
São esses os padrões de boa conduta que se impõem a todos que desejem ter acesso aos mercados globais. Nada obriga o Brasil a aceitá-los. Mas, para fazer parte desse clube, não há alternativa a não ser aceitar as regras pelas quais os demais membros se pautam.
Em face dessa realidade, o que fazer? Podemos, é claro, queixar-nos do destino que nos fez nascer ao sul do Equador, não aceitar as regras do jogo, juntar-nos a Fidel Castro e ao premiê malaio, Mahathir Mohamad, na arquibancada, esperando o fim do capitalismo e a ruína dos países desenvolvidos. Temo que tenhamos de esperar muito tempo -coisa que Fidel acha que tem, mas que o Brasil, certamente, não tem.
É preciso, pois, deixar de lado slogans dos anos 50 e 60 e discutir o que realmente interessa. Por que nos incomoda tanto ouvir do FMI que precisamos fazer um ajuste fiscal, se ele vem sendo buscado por todos os ministros da Fazenda do país nos últimos dez anos?
Podemos até debater se as receitas do Fundo foram as mais adequadas para a Tailândia ou a Rússia. É um interessante debate acadêmico. Mas, no caso do Brasil, não resta a menor dúvida de que nosso problema é fiscal; precisamos fazer nosso tão adiado ajuste imediatamente. Não porque o FMI o exige, mas porque é absolutamente essencial para que o país retome uma rota de desenvolvimento sustentável. Se não o fizermos, com o grau de urgência que tem nos faltado ao longo dos últimos anos, estaremos nos isolando do mundo.
Como em tantas outras vezes no passado, somos chamados a optar entre a aceitação de um futuro medíocre e nosso permanente compromisso com o crescimento econômico e o enfrentamento da pobreza. Nenhum desses objetivos será atingido por políticas que nos isolem do mundo e do fluxo de capitais que move a economia global.
No que toca ao FMI, deveríamos nos lembrar de que é nosso sócio nessa empreitada. O sucesso do programa de ajuste brasileiro é fundamental para o futuro do Fundo, cujo papel vem sendo duramente questionado não por nossos aliados, mas por aqueles que entendem que países emergentes deveriam ser abandonados à própria sorte.
Quanto ao papel que o Fundo desempenha nesse jogo global, talvez ajude imaginá-lo como o porteiro do clube, encarregado de verificar se os sócios cumprem as regras e usam paletó e gravata. Não é de bom-tom brigar com o porteiro -e pode nos custar caro.


Francisco Gros, 56, economista, é diretor-executivo do banco Morgan Stanley Dean Witter. Foi presidente do Banco Central do Brasil.



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