São Paulo, terça-feira, 23 de março de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Hora de dizer não

Quando, há mais de duas décadas, o Brasil ingressou no rumo empobrecedor que vem trilhando, a nação tinha, entre os maiores países em desenvolvimento, companheiros nessa trajetória. Agora não tem nenhum. O país teima sozinho em caminho que os outros já rejeitaram com maior ou menor clareza. De todos eles, é hoje o que menos cresce.
O que temos pela frente? Recuperação medíocre, porque limitada por falta de renda e excesso de juro, e precária, porque sujeita a ser interrompida por qualquer choque externo. Um Estado que parou de investir para honrar sua dívida só consegue pagar metade do serviço dela. Caímos sob o domínio de idéia que esses anos de estagnação e conformismo já provaram falsa: que agrados sucessivos aos mercados financeiros -na condução das políticas monetária e fiscal e na definição da agenda de reformas- propiciam investimentos e empregos. A primazia dada à confiança financeira ajudou a levar o Brasil à breca.
Enquanto isso, o país se pergunta quantos escândalos ainda estão por transparecer, por conta de acertos político-empresariais negociados num ambiente em que se confundem hegemonismo, dirigismo e fisiologismo. Falta pouco para que o presidente -cada vez mais escapista e inconseqüente- comece a ser vaiado por onde ande no país.
Com o enfraquecimento do governo, patenteia-se a relação de convergência e de comprometimento entre o PSDB e o PT: duas agremiações, sediadas em São Paulo, que, embora ricas em quadros que reivindicam o crescimento includente, se juntaram em defesa de estratégia pelo menos tão nociva aos paulistas quanto aos brasileiros em geral. Defesa impelida menos por interesse partidário ou empresarial do que por desorientação, a mesma desorientação que aflige a grande mídia, que, mendigando ajuda do Estado, continua, quase toda ela, a apoiar a política que a quebrou. Diante de tudo isso, é preciso afirmar três verdades que definem ponto de partida para a ação de que o Brasil necessita.
Em primeiro lugar, não falta alternativa de rumo. A alternativa está muito clara. Acarreta riscos e reações. Só mistura de confusão e covardia, porém, explica que se insista, em nome da prudência, em caminho que faz o Brasil minguar, econômica e espiritualmente.
Em segundo lugar, não atua como estadista quem, da suposta oposição, se apresente, em nome da "governabilidade", para escudar o governo. Trabalhar para derrotar, pelo esclarecimento e pelo voto, nossos governantes infiéis é hoje o dever mais premente de todos os cidadãos.
Em terceiro lugar, o país não deve optar entre um não-governo, que executa política que foi eleito para substituir, uma não-oposição, que só pode criticar o governo como executor menos competente da mesma política malograda que ela protagonizou, e um sectarismo de esquerda, que se contenta em fazer contraponto em vez de se esforçar por fazer diferença. Temos de construir, começando dentro da classe média e das organizações da sociedade brasileira, outra força. Força que represente a alternativa -capacitadora de energias e democratizadora de oportunidades- desejada pelos brasileiros. Que a construção dessa força pareça quase impossível, em meio aos constrangimentos que cercam nossa vida pública, só torna a tarefa mais atraente para os espíritos magnânimos e fortes.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.

www.law.harvard.edu/unger


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