São Paulo, terça-feira, 23 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Pela reforma sem súmulas vinculantes

JOSÉ EDUARDO MARTINS CARDOZO

A reforma do Poder Judiciário finalmente parece ter começado a sair do abstrato mundo das boas preocupações. As várias iniciativas tomadas pelo Ministério da Justiça e pela comissão especial criada pela Câmara dos Deputados, e em especial o parecer apresentado pelo senador José Jorge (PFL-PE) sobre a proposta de emenda constitucional que trata da matéria, na Comissão de Justiça do Senado Federal, recolocaram a discussão na ordem do dia.
Não tenho dúvida de que a intenção do senador ao apresentar essa manifestação foi a melhor possível. Acolheu a proposta de controle externo da magistratura, definiu parâmetros objetivos para impedir que juízes exerçam a advocacia imediatamente após suas aposentadorias e ainda apontou diversas regras para a busca de um sistema de prestação jurisdicional mais transparente e eficiente para o Estado.
Todavia a vida tem nos ensinado que nem sempre as boas intenções geram boas conseqüências. Às vezes, a busca desesperada dos meios para a solução de um problema leva a que se perca a visão maior dos fins que animam a solução do próprio problema. Ao se tentar salvar a árvore, aniquila-se a floresta.


É sabido que a interpretação de uma lei não é um ato de técnica jurídica pura e neutra


É o que poderá ocorrer com a reforma do Poder Judiciário, se for acolhida pelo Senado a proposta de súmulas vinculantes sugerida no parecer do senador Jorge. Por ela, o Supremo Tribunal Federal, consolidando sua posição interpretativa acerca de certas questões, poderá fixar regras gerais determinando o alcance e o sentido das nossas leis, de modo que todos os magistrados estejam sempre obrigados a segui-las. Não poderão mais discordar dessas "ordens superiores", mesmo que as reputem erradas ou tenham novos argumentos para questioná-las. Com isso, pretende-se unificar para todo o país as interpretações legais de matérias controvertidas, agilizando as decisões de litígios.
Mas perguntemos: para que se quer um Judiciário mais ágil? A rapidez decisória de um litígio, naturalmente, não é um fim, mas um meio. Um meio para que a ofensa ao direito não se perpetue e para que a vontade da maioria, expressa pela lei, seja assegurada. Um meio, enfim, para a manutenção da democracia.
É na ausência dessa compreensão que reside o equívoco da proposta das súmulas vinculantes. Com a sua adoção, a pretexto de agilizar a prestação jurisdicional, estar-se-á atribuindo à cúpula do Judiciário, constituída por magistrados não eleitos pelo povo, e vitalícios, o poder de fixar, em situação superior ou no mínimo equivalente à dos legisladores, regras interpretativas genéricas que a todos caberá obedecer, sem contestação e sem poder de revisão, já que apenas por esses mesmos magistrados é que poderão ser revistas. Seu poder será soberano, pois aos juízes da Corte Suprema caberá dizer para a sociedade, de modo genérico, o que afirma a lei. Suas palavras valerão mais do que as palavras votadas e aprovadas pelos representantes eleitos pelo povo (Poder Legislativo).
Afinal, aos parlamentares apenas caberá produzir a "lei" no seu sentido formal. No seu sentido "real", no seu sentido que tem valor efetivo e vinculante, a lei será ditada pelo STF sempre que seus ministros entenderem que assim deva ser feito.
Não há nessa afirmação, sinceramente, nenhum exagero. É sabido que a interpretação de uma lei não é um ato de técnica jurídica pura e neutra, mas sim uma verdadeira opção influenciada por fatores ideológicos, culturais e políticos. Interpretar, portanto, é sempre uma escolha valorativa feita pelo intérprete a partir dos vários sentidos possíveis de uma norma legislativa. E é na interpretação que se fixa o conteúdo do que de fato deve ser respeitado por todos.
Se assim é, se vier o Congresso a atribuir à cúpula do Judiciário o poder de promulgação dessas verdadeiras leis interpretativas, a que se convencionou chamar de súmulas vinculantes, estará retirando do povo o poder de definir, por seus representantes, o sentido e o alcance da sua própria vontade. A lei valerá genericamente não pelo que o Legislativo afirmou dentro da ordem jurídica, mas pelo que o Supremo disser, dentro das "suas" opções valorativas
Não há, pois, como pretender agilizar as prestações jurisdicionais eliminando a finalidade maior a ser alcançada por essa própria agilização. Há, com certeza, outros meios para que a vontade democrática da população possa ser mantida por decisões ágeis do Judiciário, sem que o equilíbrio dos Poderes seja destroçado e sem que o poder das leis passe a ser emanado não mais do povo, como ordena a Constituição, mas de uns poucos homens togados não eleitos pelo voto direto de todos os brasileiros.
Sinceramente, espero que o Senado Federal medite cuidadosamente sobre a importante decisão que tomará quando apreciar o parecer do senador Jorge, nos próximos dias. E não aniquile a floresta ao pretender salvar a árvore.

José Eduardo Martins Cardozo, 44, advogado, deputado federal pelo PT-SP, é o presidente da Comissão de Reforma do Judiciário da Câmara.


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