São Paulo, quinta-feira, 23 de março de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O mito (verdadeiro) de Robin Hood às avessas

ODED GRAJEW

A desigualdade tem sido, infelizmente, a grande marca do nosso país. Embora o Brasil seja o país que mais cresceu no último século, a nossa curva da desigualdade de renda não se alterou, nos deixando na vergonhosa situação de estar entre as últimas colocações no ranking de todos os países do mundo. Parece que o Brasil abandonou a bandeira ética empunhada por todas as grandes lideranças religiosas, espirituais e humanistas que, sem exceção, lutaram -e, inclusive, arriscaram suas vidas- pela justiça social.
Em recente seminário realizado pelo movimento ABCD (Ação Brasileira pelo Combate à Desigualdade), foram analisados os impactos que o atual sistema fiscal-tributário e o Orçamento da União têm sobre a desigualdade de renda no Brasil.
Recentes pesquisas mostram que a desigualdade de renda no Brasil tem caído de forma bastante tímida, quase milimétrica (o índice Gini passou de 0,554, em 2003, para 0,564, em 2004), nos deixando na décima pior colocação do ranking mundial. Essa queda se deve à diminuição de 1,6% dos rendimentos dos 5% mais ricos da população contra o aumento de 3,2% dos 50% mais pobres -e deve ser vista com bastante cautela.
A pesquisa se baseia na declaração das pessoas em entrevistas pessoais, e sabemos perfeitamente do receio crescente que os mais ricos têm de declarar suas rendas. E, por outro lado, as pessoas mais ricas possuem inúmeros instrumentos legais para fazer seu planejamento tributário de maneira a esconder, sob diversas formas, os seus reais rendimentos.
O nosso quadro tributário e fiscal é imoral. As pessoas que ganham até dois salários mínimos pagam 48,8% dos seus rendimentos em impostos. Mesmo na economia informal, as pessoas pagam impostos indiretos quando consomem produtos ou serviços.


Os impostos representam 48,8% da renda de quem recebe até dois salários mínimos e 26,3% para quem ganha mais que 30

No Brasil, os impostos indiretos representam 12,1%, e os diretos, 4,1%, ao passo que, nos Estados Unidos, representam 4,6% e 12,4%, e, no Canadá, 8,8% e 13%, respectivamente. A carga tributária diminui à medida que aumenta o rendimento das pessoas, chegando a representar 26,3% para quem ganha acima de 30 salários mínimos. São, portanto, os pobres que, proporcionalmente, pagam mais impostos.
A distribuição de recursos no Orçamento federal não é menos vergonhosa. A nossa carga tributária total (União, Estados e municípios) equivale à carga tributária da Inglaterra, Alemanha e Canadá, países que certamente devolvem esses recursos de forma bem melhor a sua população.
Dos recursos arrecadados, aproximadamente R$ 16 bilhões vão para a educação, R$ 36 bilhões, para a saúde, e R$ 150 bilhões, para o pagamento dos juros da dívida governamental.
Embora a Constituição brasileira obrigue a uma total transparência nas contas públicas (a população tem o direito de saber o que é feito do seu dinheiro), a lista dos recebedores dos juros continua sendo totalmente sigilosa. Mas não é difícil imaginar que esses recursos são destinados aos mais ricos, que possuem as maiores poupanças e cujos rendimentos permitem que eles obtenham sobras para aplicar no mercado financeiro.
Algumas estimativas avaliam que aproximadamente 20 mil famílias recebem 70% desses recursos. Anualmente, 8 milhões de famílias recebem R$ 7 bilhões do Bolsa-Família, enquanto aproximadamente 20 mil famílias recebem R$ 105 bilhões em pagamento de juros.
Temos, portanto, um sistema fiscal e tributário e uma execução orçamentária que funcionam no sistema Robin Hood às avessas: por esses mecanismos, os pobres transferem anualmente recursos bilionários aos mais ricos. A situação nos Estados e municípios não é muito diferente.
Assim, não é por acaso que temos sido, durante tantos anos, uma das sociedades mais antiéticas do mundo. Não é por acaso também que a violência, fruto dessa injustiça, apresenta todas as características de uma guerra civil.
Essa situação foi montada ao longo do tempo por nossos governantes e legisladores, e não porque eles, na sua grande maioria, sejam apenas perversos e insensíveis, mas por um sistema no qual eles têm que retribuir o investimento que neles fizeram os financiadores (que, majoritariamente, pertencem às camadas mais ricas da população) das campanhas eleitorais.
Esse assunto e essas informações são desconhecidos pela maioria da sociedade brasileira, que delega aos especialistas a discussão sobre nosso sistema fiscal e tributário e o acompanhamento da elaboração e execução dos orçamentos públicos, o que explica em boa parte a timidez na pressão por mudanças.
Por sua imensa relevância, pelo decisivo impacto sobre nossas vidas e nosso país, deveria ser objeto de debate obrigatório e permanente nas escolas, universidades, sindicatos, organizações sociais e religiosas, entidades empresariais e meios de comunicação.

Oded Grajew, 61, empresário, membro do Conselho de Desenvolvimento Social e Econômico, é presidente do Conselho Deliberativo do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e presidente do Comitê Brasileiro do Pacto Global. Foi idealizador do Fórum Social Mundial, idealizador e presidente da Fundação Abrinq e assessor especial do presidente da República (2003).

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