São Paulo, quarta-feira, 23 de junho de 2004 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES LEONEL BRIZOLA O último getulista?
MARIA VICTORIA BENEVIDES
Ora, sem dúvida Brizola era "fora de moda", mas não no sentido lembrado acima, com o qual também me identifico. Seu estilo de fazer política não acompanhou as principais características da democracia contemporânea, ou seja, ele permaneceu uma grande liderança popular, mas que desconfiava das expressões autônomas dos movimentos sociais e populares, das formas mais modernas da democracia participativa. Foi sempre um líder paternalista, com aquela autoridade autoritária (perdoem a redundância) decorrente de sua firmeza moral, honestidade pessoal e política, mas também de uma exigência de lealdade dos seguidores, partidários e afilhados que beirava um certo tipo de tirania senhorial. Um gauchão à moda antiga, com um sentido de honra, dever e obediência de tempos imemoriais. De sua longa e agitada vida pública, gostaria de destacar alguns momentos cruciais. Cena 1: Brizola lidera a reação ao golpe de 1961, quando Jânio renuncia, os militares não aceitam a posse constitucional do vice, João Goulart, e acabam impondo um parlamentarismo de fachada. Cena 2: Brizola novamente defende a legalidade contra o golpe de 64, pronto a comandar a marcha do Sul. Cena 3: Brizola perde a sigla de seu combativo PTB para Ivete Vargas em São Paulo e rasga, em lágrimas, o documento. Cena 4: Brizola participa dos comícios das Diretas-Já e se aproxima de Lula e do PT. Cena 5: Brizola rompe com Lula e o PT e se isola. Desses momentos, escolhidos entre tantos outros, fica, no meu entender, a coerência do velho trabalhista getulista (Ivete, apesar do sobrenome, não representava o antigo PTB e, ao que consta, estava enturmada com o projeto do general Golbery para a reforma partidária) e do nacionalista que não pode aceitar a política de submissão ao FMI. Ao mesmo tempo, é o legalista "pela honra" na defesa do presidente eleito e do regime, mas que também achava que a Constituição não era "intocável" (como bradavam os udenistas "carcomidos"), pois chegou a defender a reforma agrária "na lei ou na marra". Poucos líderes terão sido tão amados e odiados como Leonel Brizola. João Trajano Sento-Sé, cujo livro recomendo ("Brizolismo: estetização da política e do carisma"), discute o que chama de "bildung" [cultura] brizolista, que compreenderia a universalização do ensino e um Estado forte, promotor do bem-estar social. Suas referências históricas são a Revolução de 30, a "Carta-Testamento" de Vargas, a obra de Alberto Pasqualini e a "Carta de Lisboa", esta do fim do exílio. Seus inimigos são as oligarquias e os agentes internos do imperialismo. Seu alvo privilegiado inclui as ditas minorias, de mulheres, negros e índios. Seus monumentos integradores são os Cieps e o Sambódromo. Seu espaço de conscientização popular é a Brizolândia carioca. Para as elites, sempre foi um estorvo, demagogo, caudilho, arrivista, o subversivo manipulador das massas ordeiras e trabalhadoras ("com Brizola, os morros vão descer e aí será o caos"). Bem, digo eu, a ousadia do velho gaúcho de origem humilde foi querer "fazer parte do clube". Getúlio e Jango tinham "legitimidade fidalga" para o mando, ele não. Se tivesse de escolher o traço mais importante de Brizola, diria de pronto: sua paixão pela escola pública. O garoto pobre que conseguiu se formar em engenharia e ser governador de dois Estados importantes nunca esqueceu sua origem. Podemos divergir sobre suas escolhas e métodos, mas reconhecemos que colocar educação como efetiva prioridade é o que queremos -a consolidação da nação e da democracia no Brasil. Daí a jogada de mestre de Brizola ao dar a Darcy Ribeiro a liberdade para construir, aos poucos e com aquela inteligência privilegiada, um projeto nacional de educação que ainda tem muito de utópico, mas deitou raízes. PS - Permitam-me uma nota pessoal sobre a primeira vez que estive com Brizola. Recém-chegado do exílio de 16 anos, veio à minha casa de surpresa, trazido por um amigo comum, um padre basco e socialista. Eu chegava da feira, com o carrinho cheio de frutas, e ele se emocionou com as jabuticabas. Ali em pé na cozinha, falando das saudades do Brasil, ia discursando sobre educação enquanto devorava meio quilo das "pretinhas". E ainda levou o que sobrou "para a Neuza comer no hotel". Maria Victoria de Mesquita Benevides, 61, socióloga, é professora titular da Faculdade de Educação da USP e autora de, entre outros livros, "O PTB e o Trabalhismo". Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Marco Antonio Villa: O último caudilho Índice |
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