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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Brasil errou ao enviar tropas ao Haiti?
NÃO
Diplomacia solidária
RICARDO SEITENFUS
Um rápido olhar sobre Porto Príncipe, a devastada capital do Haiti,
onde me encontro, indica o caráter indispensável da presença das forças civis
e militares brasileiras. Tendo o anterior
governo haitiano abolido as Forças Armadas e as forças policiais, o povo indefeso conta unicamente com a proteção
das tropas estrangeiras.
Mais que superficialidade, sinaliza
profunda ignorância, senão má-fé,
comparar o Haiti com o Brasil ou qualquer de suas regiões. Aqui não se trata
de pobreza absoluta, nem da ação de organizações paralelas vinculadas ao tráfico de drogas e outros crimes, nem tampouco de crescente violência urbana ou
de escassa presença do Estado. Trata-se
da simples ausência de Estado. Da convivência desregrada entre seres humanos abandonados à própria sorte, sem
nenhuma possibilidade de salvação individual, diante da perspectiva de guerra eterna de todos contra todos, fruto da
histórica e atroz omissão das elites internas e transnacionais, que nada mais
têm a retirar desta depauperada terra.
Aqui paira no ar uma atmosfera de
suspeição e de boatos que forma a vibrante tensão da instabilidade brutal.
Somente o olhar e a presença física do
estrangeiro -cabalmente insuficiente,
pois só metade do efetivo militar encontra-se em operação- têm evitado a explosão dessa panela de pressão, a aberta
guerra civil, como já ocorreu em muitos
momentos da história do Haiti. O desafio urgente consiste em estabilizar certos bairros da capital e o que está em
questão é o modus operandi, jamais o
abandono das operações. Em outras palavras: devemos impor a paz, podendo
para tanto lançar mão de meios ofensivos, ou devemos nos restringir a exercer
uma observação atenta que mantenha a
violência em níveis aceitáveis?
Um segundo campo em que o Brasil
sustenta os esforços da ONU no Haiti
envolve a indispensável mediação política. A violenta cultura política haitiana
faz com que o diálogo seja coadjuvado
pelo silêncio ensurdecedor das armas já
empunhadas e dos clamores das vítimas. Nossas características nacionais e
a visão de mundo que delas decorrem
podem ser valiosas na construção de
pontes de diálogo entre as diferentes
facções haitianas. É um trabalho complexo, de ourives, ouvidor e conselheiro. Dele depende a construção de um
novo Haiti, que somente poderá advir
do resultado da vontade coletiva dos
haitianos, também a ser construída.
A terceira área em que o Brasil atua
tem uma dimensão de médio e longo
prazo. Ela consiste na recuperação da
infra-estrutura e nos projetos socioeconômicos que objetivam amenizar os
gravíssimos problemas com os quais o
Haiti se defronta -particularmente no
tecido urbano. O Haiti integra a tristemente célebre lista dos "países menos
avançados" como único representante
do continente americano. O mais grave
é que a recorrente crise política faz com
que esse país, já paupérrimo, empobreça ainda mais a cada ano.
É indispensável que a espiral da violência e do empobrecimento na qual ingressou o Haiti seja interrompida. Ora,
tal desafio só poderá ser vencido com a
colaboração estrangeira. Os países doadores, amigos do Haiti, já ofereceram
mais de US$ 1 bilhão para os projetos
dessa área. O Brasil, não dispondo de
recursos financeiros, propôs sua expertise nas ações em que colheu extraordinários resultados, como é o caso dos catadores de lixo. Seria razoável e humano
que, dotado dessas características, o
Brasil se furtasse a colaborar com o povo mais pobre do continente, como advogam algumas vozes, felizmente isoladas, pois egoístas?
Não somente o Brasil agiu corretamente ao enviar tropas ao Haiti mas sobretudo o fez desprovido de todo e
qualquer interesse que não fosse o de
servir às causas mais nobres da humanidade. Daqui não pode sair nenhum proveito pessoal, mas tão-somente a satisfação de obedecer a um dever de consciência e de dar forma real a valores outrora não mais que retóricos.
Nestes tempos em que o interesse material se sobrepõe à solidariedade, a atitude do Brasil, associada à de outros
países do Mercosul -Argentina e Uruguai- e à do Chile, mostra que estamos
construindo uma sociedade latino-americana na qual o Haiti terá o seu lugar. Nossos soldados têm se portado heroicamente, numa conjuntura profundamente adversa e complexa, inspirando-nos orgulho e confiança.
Que os raros críticos da atitude do governo Lula em face do drama haitiano
deixem de se inspirar em pequenos embates da política municipal e alcem
maiores vôos, tal como fez Parreira
quando veio ao Haiti. Questionado, logo após a partida de futebol protagonizada pela notável seleção brasileira, sobre os transtornos que poderia provocar o périplo a Porto Príncipe na preparação dos jogadores, ele foi tão lapidar
quanto exemplar: "O jogo no Haiti será
a mais importante lembrança que terei
de toda a minha carreira".
É com esse espírito que está sendo
praticada pelo Brasil uma "diplomacia
solidária". Que tenha longa vida!
Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 56, professor
titular de direito internacional público e de organizações internacionais na Universidade Federal
de Santa Maria (RS), é o mediador político enviado pelo Brasil ao Haiti.
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