São Paulo, sábado, 23 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O Brasil errou ao enviar tropas ao Haiti?

NÃO

Diplomacia solidária

RICARDO SEITENFUS

Um rápido olhar sobre Porto Príncipe, a devastada capital do Haiti, onde me encontro, indica o caráter indispensável da presença das forças civis e militares brasileiras. Tendo o anterior governo haitiano abolido as Forças Armadas e as forças policiais, o povo indefeso conta unicamente com a proteção das tropas estrangeiras.
Mais que superficialidade, sinaliza profunda ignorância, senão má-fé, comparar o Haiti com o Brasil ou qualquer de suas regiões. Aqui não se trata de pobreza absoluta, nem da ação de organizações paralelas vinculadas ao tráfico de drogas e outros crimes, nem tampouco de crescente violência urbana ou de escassa presença do Estado. Trata-se da simples ausência de Estado. Da convivência desregrada entre seres humanos abandonados à própria sorte, sem nenhuma possibilidade de salvação individual, diante da perspectiva de guerra eterna de todos contra todos, fruto da histórica e atroz omissão das elites internas e transnacionais, que nada mais têm a retirar desta depauperada terra.
Aqui paira no ar uma atmosfera de suspeição e de boatos que forma a vibrante tensão da instabilidade brutal. Somente o olhar e a presença física do estrangeiro -cabalmente insuficiente, pois só metade do efetivo militar encontra-se em operação- têm evitado a explosão dessa panela de pressão, a aberta guerra civil, como já ocorreu em muitos momentos da história do Haiti. O desafio urgente consiste em estabilizar certos bairros da capital e o que está em questão é o modus operandi, jamais o abandono das operações. Em outras palavras: devemos impor a paz, podendo para tanto lançar mão de meios ofensivos, ou devemos nos restringir a exercer uma observação atenta que mantenha a violência em níveis aceitáveis?
Um segundo campo em que o Brasil sustenta os esforços da ONU no Haiti envolve a indispensável mediação política. A violenta cultura política haitiana faz com que o diálogo seja coadjuvado pelo silêncio ensurdecedor das armas já empunhadas e dos clamores das vítimas. Nossas características nacionais e a visão de mundo que delas decorrem podem ser valiosas na construção de pontes de diálogo entre as diferentes facções haitianas. É um trabalho complexo, de ourives, ouvidor e conselheiro. Dele depende a construção de um novo Haiti, que somente poderá advir do resultado da vontade coletiva dos haitianos, também a ser construída.
A terceira área em que o Brasil atua tem uma dimensão de médio e longo prazo. Ela consiste na recuperação da infra-estrutura e nos projetos socioeconômicos que objetivam amenizar os gravíssimos problemas com os quais o Haiti se defronta -particularmente no tecido urbano. O Haiti integra a tristemente célebre lista dos "países menos avançados" como único representante do continente americano. O mais grave é que a recorrente crise política faz com que esse país, já paupérrimo, empobreça ainda mais a cada ano.
É indispensável que a espiral da violência e do empobrecimento na qual ingressou o Haiti seja interrompida. Ora, tal desafio só poderá ser vencido com a colaboração estrangeira. Os países doadores, amigos do Haiti, já ofereceram mais de US$ 1 bilhão para os projetos dessa área. O Brasil, não dispondo de recursos financeiros, propôs sua expertise nas ações em que colheu extraordinários resultados, como é o caso dos catadores de lixo. Seria razoável e humano que, dotado dessas características, o Brasil se furtasse a colaborar com o povo mais pobre do continente, como advogam algumas vozes, felizmente isoladas, pois egoístas?
Não somente o Brasil agiu corretamente ao enviar tropas ao Haiti mas sobretudo o fez desprovido de todo e qualquer interesse que não fosse o de servir às causas mais nobres da humanidade. Daqui não pode sair nenhum proveito pessoal, mas tão-somente a satisfação de obedecer a um dever de consciência e de dar forma real a valores outrora não mais que retóricos.
Nestes tempos em que o interesse material se sobrepõe à solidariedade, a atitude do Brasil, associada à de outros países do Mercosul -Argentina e Uruguai- e à do Chile, mostra que estamos construindo uma sociedade latino-americana na qual o Haiti terá o seu lugar. Nossos soldados têm se portado heroicamente, numa conjuntura profundamente adversa e complexa, inspirando-nos orgulho e confiança.
Que os raros críticos da atitude do governo Lula em face do drama haitiano deixem de se inspirar em pequenos embates da política municipal e alcem maiores vôos, tal como fez Parreira quando veio ao Haiti. Questionado, logo após a partida de futebol protagonizada pela notável seleção brasileira, sobre os transtornos que poderia provocar o périplo a Porto Príncipe na preparação dos jogadores, ele foi tão lapidar quanto exemplar: "O jogo no Haiti será a mais importante lembrança que terei de toda a minha carreira".
É com esse espírito que está sendo praticada pelo Brasil uma "diplomacia solidária". Que tenha longa vida!


Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 56, professor titular de direito internacional público e de organizações internacionais na Universidade Federal de Santa Maria (RS), é o mediador político enviado pelo Brasil ao Haiti.


Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: José Arbex Jr.: A farsa da paz no Haiti
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.