São Paulo, terça-feira, 23 de outubro de 2007

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MARCOS NOBRE

Experiência segregada

ANDO ME SENTINDO apartado do mundo por não ter ainda visto "Tropa de Elite". Não conheço nenhum filme brasileiro tão amplamente discutido, com tantas interpretações radicalmente opostas.
Construindo o filme a partir do que me contam e do que leio, chama a atenção que sempre aparece em algum momento uma "moral da história". Só que o filme parece uma parábola estranha, porque a moral da história depende de quem conta.
Fiquei tentado a comparar essa situação com parábolas cinematográficas clássicas. A que me ocorreu foi a do filme "O Sol É para Todos", de 1962. Também foi um filme de grande sucesso, baseado em um best-seller. Também tem um narrador. Mas é uma menina de 6 anos que conta a história, e não o capitão Nascimento.
No lugar da violência bruta e aberta de "Tropa", "O Sol É para Todos" gira em torno da estilização de uma violência racial latente, que emerge quando um negro é acusado e condenado injustamente pelo estupro de uma moça branca em uma cidade do sul dos EUA.
O advogado de defesa, branco, (Gregory Peck) recorre a todos os expedientes do bom-mocismo da época para demonstrar a tese de que o acusado merece um julgamento imparcial. O final é trágico, mas embute uma mensagem clara contra o preconceito e a discriminação.
Uma parábola clássica tem como pano de fundo alguma experiência compartilhada. Sua moral, mesmo que vá contra uma cultura política estabelecida, tem ainda de se apoiar nela de alguma maneira para funcionar.
As discussões sobre "Tropa" mostram um país dividido de alto a baixo. Ao contrário do que pretendem os olhos da criança de "O Sol É para Todos", o capitão Nascimento não é inocente. Mas também não quer ser culpado sozinho. Ao dividir a culpa com a platéia, não divide por igual.
A segregação espacial, econômica e social brasileira é também segregação radical da experiência. É expressão de uma cultura política democrática frágil. Esse é também o sentido do confronto entre Luciano Huck e Ferréz nas páginas da Folha. Dois mundos inteiramente apartados postos lado a lado sem qualquer perspectiva de diálogo. De todas as conversas e artigos, a imagem que ficou para mim é a de que "Tropa" é uma parábola em disputa. Cada qual puxa o filme para seu lado para justificar, e não para alterar, a maneira de ver o país.
As discussões que "Tropa" produziu até agora não foram além da indiferença de um espelho em que cada qual vê o que quer. Mas ter trazido à tona esses reflexos, todas as divisões políticas e culturais antes escondidas ou camufladas, é já de um enorme mérito.


MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta coluna.


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