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MARCOS NOBRE
Experiência segregada
ANDO ME SENTINDO apartado do mundo por não ter
ainda visto "Tropa de Elite".
Não conheço nenhum filme brasileiro tão amplamente discutido,
com tantas interpretações radicalmente opostas.
Construindo o filme a partir do
que me contam e do que leio, chama a atenção que sempre aparece
em algum momento uma "moral
da história". Só que o filme parece
uma parábola estranha, porque a
moral da história depende de quem
conta.
Fiquei tentado a comparar essa
situação com parábolas cinematográficas clássicas. A que me ocorreu foi a do filme "O Sol É para Todos", de 1962. Também foi um filme de grande sucesso, baseado em
um best-seller. Também tem um
narrador. Mas é uma menina de 6
anos que conta a história, e não o
capitão Nascimento.
No lugar da violência bruta e
aberta de "Tropa", "O Sol É para
Todos" gira em torno da estilização
de uma violência racial latente, que
emerge quando um negro é acusado e condenado injustamente pelo
estupro de uma moça branca em
uma cidade do sul dos EUA.
O advogado de defesa, branco,
(Gregory Peck) recorre a todos os
expedientes do bom-mocismo da
época para demonstrar a tese de
que o acusado merece um julgamento imparcial. O final é trágico,
mas embute uma mensagem clara
contra o preconceito e a discriminação.
Uma parábola clássica tem como
pano de fundo alguma experiência
compartilhada. Sua moral, mesmo
que vá contra uma cultura política
estabelecida, tem ainda de se
apoiar nela de alguma maneira para funcionar.
As discussões sobre "Tropa"
mostram um país dividido de alto a
baixo. Ao contrário do que pretendem os olhos da criança de "O Sol É
para Todos", o capitão Nascimento
não é inocente. Mas também não
quer ser culpado sozinho. Ao dividir a culpa com a platéia, não divide
por igual.
A segregação espacial, econômica e social brasileira é também segregação radical da experiência. É
expressão de uma cultura política
democrática frágil. Esse é também
o sentido do confronto entre Luciano Huck e Ferréz nas páginas da
Folha. Dois mundos inteiramente
apartados postos lado a lado sem
qualquer perspectiva de diálogo.
De todas as conversas e artigos, a
imagem que ficou para mim é a de
que "Tropa" é uma parábola em
disputa. Cada qual puxa o filme para seu lado para justificar, e não para alterar, a maneira de ver o país.
As discussões que "Tropa" produziu até agora não foram além da
indiferença de um espelho em que
cada qual vê o que quer. Mas ter
trazido à tona esses reflexos, todas
as divisões políticas e culturais antes escondidas ou camufladas, é já
de um enorme mérito.
MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta
coluna.
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