São Paulo, segunda-feira, 23 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O PT e a cama-de-gato

CESAR MAIA

Não deixa de ser um eufemismo o PT reclamar da herança que estaria recebendo do governo que termina. Afinal de contas, sua vitória é, em grande medida, produto da conjuntura econômica complexa que o país atravessa. Sem essa herança não haveria vitória.
Não quero que o PT agradeça por isso. Seria um exagero. Mas deve começar a se debruçar sobre a cama-de-gato, antes que um nó aperte o seu próprio pescoço. Esta é a questão de fundo: como desatar o nó quase cego dessa conjuntura?
Será inevitável raciocinar num sorites. Cresce a participação da dívida pública em relação ao PIB. Cresce o risco Brasil. A conjuntura política multiplica o fator de risco. Sobe a taxa de câmbio, o que reforça o aumento da participação da dívida no PIB. Aumentam os preços dos produtos comercializáveis e daqueles administrados com regras de reajuste pelo IGP. Amplia-se a dificuldade de colocação de títulos. "Monetiza-se" parte da dívida. Expandem-se a base monetária e os meios de pagamento. Os preços dos produtos não-comercializáveis são afetados. Aperta-se a política monetária, elevando-se alguns encaixes do sistema financeiro e, depois, a taxa de juros, que por sua vez afeta a relação entre dívida e PIB, que afeta a taxa de risco, que...
Com a inflação num novo patamar, seja ela medida pelo IGP como pelo IPC, a questão fiscal transforma-se numa armadilha, gerando ganhos fiscais inflacionários. Vale dizer: os 3,75% de superávit primário orgânico, com o IPC a 5%, correspondem a uns 2,75% com o IPC a 10%, ou mais, se usarmos o IGP como índice.


É possível o andar de cima governar como social-liberal e os andares de baixo exigirem ações social-democratas?


Se for assim, a promessa de manter o atual superávit primário sinaliza para o mercado que o novo governo vai querer conviver com uma inflação mais alta, o que desperta ansiedades. Esse caminho -correr um novo risco, que é conviver com uma inflação mais alta- produz desdobramentos contraditórios: de um lado, alivia as tensões intra-PT/aliados/ base social/promessas, mas, de outro, torna a conjuntura mais volátil, com todos os componentes de risco que se possam imaginar.
Os analistas econômicos, em sua grande maioria, chamam a atenção para o efeito do câmbio sobre o resultado do comércio exterior e, através dele, do déficit em conta corrente. Afirmam que este é um sinal de doença (taxa de risco Brasil), e não de saúde econômica. Dizem mais: a única forma de desatar este nó, de desfazer o sorites, é aumentar o superávit primário para, pelo menos, 5% do PIB. Com isso, reduz-se o peso da dívida, pode-se flexibilizar os juros etc. e tal. Mas, para isso, o PT deve gerir a conjuntura de forma ortodoxa, pelo menos nos dois primeiros anos, e deixar de lado as sonhadas extravagâncias fiscais socialistas.
Pode? É possível o andar de cima (o presidente e seus ministros da casa) governar como social-liberal e os andares de baixo exigirem ações social-democratas e até socialistas? O edifício resiste? Ou balança, balança... Mas não cai? Ou cai? Alguns imaginam que ainda estão nos anos 50, quando 80% da macroeconomia era definida pelas ações dos governos. Hoje, 80% dela é definida pelas chamadas forças de mercado.
Não é prazeroso para um partido de esquerda chegar ao poder e descobrir que será gestor da estabilidade macroeconômica para as iniciativas privadas. E que, quanto mais ortodoxo for no plano fiscal, mais recursos terá para fazer o bem social e controlar a conjuntura. E que essa equação é inevitável num ambiente democrático e aberto. Seus aliados e militantes saberão conviver com uma gestão econômica ortodoxa por dois anos para, depois, chegarem ao paraíso?
Blair deu sorte: o serviço econômico já tinha sido todo feito.
É sempre bom lembrar a história. Em certa ocasião, Churchill, quando deputado, estava sentado na bancada dos conservadores. Chega ao seu lado um jovem deputado que, olhando para a frente, na direção dos trabalhistas, diz: "Aí em frente estão nossos inimigos". Churchill, tirando o charuto amassado do bolso, devolve de bate-pronto: "Não, na frente estão os nossos adversários. Aqui atrás é que estão os nossos inimigos". E, como todos sabem, governar em época de crise é contrariar interesses. Principalmente os dos amigos.

Cesar Maia, 57, economista, é prefeito, pelo PFL, do Rio de Janeiro. Foi prefeito da mesma cidade de 1993 a 1996.


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