São Paulo, terça-feira, 24 de fevereiro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Where's the beef?

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

É constrangedora a maneira como se vai construindo a educação pública de primeiro grau em São Paulo. Uma colcha de retalhos periféricos, com grande repercussão na imprensa: um mínimo de 1 m2 por aluno, um máximo de 30 alunos por sala, seis horas de aula em vez de quatro, uniformes escolares de bom tecido, determina a prefeita, que oferece também piscinas e CEUs para 21 das 1.177 escolas, e mais, a progressão automática, sem garantia de aprendizado -inventada no passado e distorcida no presente. É proibido repetir de ano, aprender é secundário.
Para pasmo dos verdadeiros educadores, que ficam à margem da política de educação, no contexto de todos esses avanços -que são de fato avanços, mas absolutamente periféricos- falta o núcleo central e essencial: um projeto pedagógico inteligente e moderno, para todos os alunos, e valorização, em todos os sentidos, dos professores.


De um ensino apenas informativo e parcial, devemos passar a um que se preocupe com a formação integral


Alguns anos atrás, em resposta às investidas agressivas dos competidores que falavam da qualidade da alface, dos molhos e do pão dos seus sanduíches, o McDonald's, em resposta, distribuiu vários "outdoors" por Nova York com uma só frase: "Where's the beef?", ou seja, onde está o essencial? A resposta foi tão precisa que entrou no jargão da cidade. Penso, entretanto, que a comparação mais séria e não menos cruel é com o famoso livro "Peter's Principles", que dizia que o perigo de dar cargos a incompetentes é que eles se ocupam das questões marginais, para mostrar que fazem alguma coisa, e não da essência, para cuja solução são incompetentes. Acrescentaria também, com um pouco mais de realismo, que o maior objetivo tem sido o marketing, e não o ensino, até porque, para realizar um projeto pedagógico conseqüente, têm-se muito mais trabalho e menos visibilidade.
Mas, por Deus, não há outro caminho, se quisermos desenvolver nosso país. De um ensino apenas informativo e parcial, devemos passar imediatamente a um que se preocupe com a formação integral da criança. Para isso, é preciso oferecer um projeto em tempo integral em todas as escolas, usando os espaços do bairro ou da cidade, e não limitá-lo à sala de aula ou ao ambiente exclusivo da escola. Os alunos devem, porém, estar sempre supervisionados e orientados por professores bem preparados e dignamente remunerados.
O pós-escola de cada dia deve incluir: lição de casa, arte, ética, esporte, jardinagem, visita a museus e outras tantas atividades. As despesas adicionais são prioritariamente com professores, ampliando seu tempo na escola, onde trabalham, aprimorando seus conhecimentos e melhorando seus salários. Essa proposta, de conteúdo pedagógico indiscutível, já foi praticada com sucesso na Escola Vocacional, projeto de Maria Nilde Mascelanni, presa e torturada pela ditadura por desenvolver cidadãos críticos e, mais recentemente, por Viviane Senna, no Nordeste brasileiro, e Gilberto Dimenstein, na Vila Madalena.
Durante o governo Montoro, com minha colaboração como seu secretário de Educação, implementamos o Profic (Programa de Formação Integral da Criança), pelo qual, sem construir novas escolas, oferecemos a todas as existentes um programa nesses moldes, que abrigou 500 mil crianças, dando-se preferência àquelas mais carentes e com maiores problemas pedagógicos e comportamentais em cada escola (verdadeiro sentido da palavra focalização, que hoje é usada equivocadamente). Cinco anos depois, houve uma avaliação independente, comparando-se, em cada escola (2.267 unidades escolares), o aproveitamento pedagógico e o comportamento social dos dois grupos de alunos. Em 86% das escolas, o grupo do Profic, apesar de ser o mais carente e o mais problemático, teve uma avaliação significativamente melhor do que o grupo de crianças em tempo parcial, e evasão escolar muito menor. Isso é fantástico e demonstra que, se oferecermos mais na escola a quem tem menos em casa, poderemos fazer com que essas crianças normalizem seu comportamento e tenham pelo menos o mesmo aproveitamento escolar que as demais.
Não faltam bons exemplos e ótimos resultados. É preciso agora inverter o processo: universalizar a essência e, depois, na medida do possível, ir vestindo-a com avanços periféricos. Com isso, a um só tempo, vamos diminuir a marginalidade infanto-juvenil, colaborar com o desenvolvimento sustentado e humano do país e tranqüilizar as mães que trabalham enquanto seus filhos estarão se preparando para serem verdadeiros cidadãos. Este é o difícil e verdadeiro papel de uma política educacional.

José Aristodemo Pinotti, 68, deputado federal pelo PFL-SP, é professor titular de ginecologia da USP. Foi secretário da Educação (1986-87) e da Saúde (1987-91) do Estado de São Paulo, secretário da Saúde do município de São Paulo (2000) e reitor da Unicamp (1982-1986).


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