São Paulo, segunda-feira, 24 de abril de 2000


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A paz atrasada


As mútuas agressões têm se mostrado incapazes de resolver os problemas da região


RAUL CUTAIT

Em 1974, tive a oportunidade de visitar rapidamente o Líbano, terra natal de meus avós paternos. É evidente que me emocionei ao conhecer, in loco, um pouco das minhas origens. Propus-me, então, a lá voltar logo que possível, fazendo uma viagem mais prolongada por todo o Oriente Médio. Contudo, no ano seguinte, eclodiu a guerra no Líbano, como uma extensão do conflito árabe-israelense, e eis que esse pequeno país foi transformado em moeda de um jogo de interesses políticos, econômicos e religiosos envolvendo os mundos ocidental e oriental. Decidi, então, que só iria retomar minha proposta depois de estabelecida a paz.
Para mim, um cirurgião que, como tantos outros médicos, dedica a vida à luta pela vida, as guerras são uma das piores facetas da espécie humana. Por mais que políticos, economistas, historiadores, sociólogos e outros estudiosos consigam interpretá-las, jamais conseguirão justificá-las. Em relação aos povos árabes e judeu, a própria história mostra quantas vezes seus caminhos se entrelaçaram, particularmente na medicina.
Senti a insensatez da guerra do Oriente Médio logo no seu início. Quando eclodiu a Guerra dos Seis Dias, o Jayme -um colega judeu do cursinho que sentava ao meu lado- e eu lamentávamos, indignados, o acontecido. Enquanto isso, em São Paulo, sírios, libaneses, judeus e pessoas de outras etnias saíam pelas ruas do centro da cidade, protestando contra a guerra.
O fato é que, nas últimas décadas, milhares de famílias, de todos os lados, perderam entes queridos. E as mútuas agressões, que sempre se associam à intolerância, têm se mostrado incapazes de resolver os problemas daquela região. Recentemente, novos ataques do Hizbollah a Israel, bem como a retaliação de Israel sobre Beirute, só provocaram indignação. Ora, o velho ditado de "olho por olho" já não cabe mais. É preciso que se entenda a paz como pré-requisito para a dignidade humana. Na guerra, todos são perdedores. Na retomada da paz, todos são vencedores, mesmo quando cedem.
A recém-concluída visita do papa João Paulo 2º ao Oriente Médio estimula algumas reflexões. Suas andanças por diversos lugares históricos são bastante significativas e devem ser entendidas em toda sua amplitude.
Como líder religioso, João Paulo 2º traz consigo a mensagem de paz. Como um indivíduo que nitidamente sente o peso dos anos, deixa claro que a causa da paz é mais importante que seu próprio bem-estar físico. Aliás, durante sua visita, um singelo gesto proclamou o acalentado futuro: três crianças, de distintas religiões, ao oferecerem terra ao papa, deixam claro que a terra deve ser para todos.
Graças à decisão de meu avô, ainda menino, de migrar para o Brasil, tenho a felicidade de viver em um país de história pacifista. Aqui privo do convívio, do carinho e da amizade de pessoas das mais diversas origens e religiões. Assim, incomoda-me, e muito, que o mesmo espírito não seja, ainda, a regra no Oriente Médio. Aliás, já há algum tempo meu amigo rabino Henry Sobel e eu acalentamos a idéia de, um dia, levar aos governantes do Oriente Médio uma caravana composta de árabes e judeus, que se propõe a dar o testemunho de uma convivência pacífica e honrada nesta terra de imigrantes, que certamente é um exemplo para aqueles que ainda insistem em causar infelicidade em prol de glória e poder.
A beligerância cansou. Está mais do que na hora de o caminho da paz se consolidar num dos mais importantes berços da civilização e da religiosidade. Quero tanto acreditar ser isso possível, mesmo com tantos entraves aparentemente intransponíveis, que já estou programando, com anos de atraso, mas com o mesmo entusiasmo, meu futuro roteiro para o Oriente Médio.


Raul Cutait, 50, cirurgião gastrenterologista, é professor-associado da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), presidente do Instituto para o Desenvolvimento da Saúde e diretor-geral do Centro de Oncologia do Hospital Sírio Libanês. Foi secretário da Saúde do município de São Paulo (administração Paulo Maluf).




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