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CARLOS HEITOR CONY
Tempo de trevas
RIO DE JANEIRO - Um radiologista de Goiânia mandou-me e-mail levantando um problema a ser criado
pelo apagão ou pelo racionamento de
energia. A medicina moderna, desde
Hipócrates, sempre dependeu de
avanços tecnológicos. Perdeu o caráter divinatório. Hoje, os laboratórios,
pouco a pouco, estão desvendando a
realidade e o mistério do nosso corpo.
Como ficarão os encarregados de tirar radiografias ou tomografias computadorizadas e de fazer análises clínicas? Nos ambientes hospitalares, é
possível que o governo os poupe dos
cortes e até mesmo do apagão. E haverá sempre a possibilidade de usar o
gerador para quebrar o galho.
Mas nos consultórios particulares?
Nas clínicas conveniadas pelos diversos planos de saúde? Um acidente
grave não vai esperar que a luz volte.
E todos sabemos que a presteza do
primeiro socorro é fundamental para
salvar uma vida.
Já tive um parente próximo, tão
próximo que era meu pai, que morreu durante um pequeno e inesperado corte de luz. Tinha 91 anos, estava
doente mesmo, não foi caso de ação
contra a Light ou contra o Estado.
Num momento desses, em si doloroso, a falta de luz é uma crueldade a
mais, uma excrescência imerecida seja lá por quem.
Meu irmão médico não poderia
salvá-lo mesmo, chegara a sua hora,
a hora da hora, que todos teremos
um dia. Mas, se fosse outra a situação, o pai teria morrido por uma banal falta de luz -literalmente isso:
falta de luz.
Goethe morreu pedindo luz, mais
luz. A tradição coloca uma vela acesa
na cabeceira dos moribundos, nos
corpos atropelados de nossas ruas. É
um símbolo piedoso, não um serviço.
E é esse serviço que nos faltará nos
próximos meses, talvez até o próximo
ano. Entramos num milênio novo
condenados anacronicamente ao retrocesso a um tempo de trevas.
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