São Paulo, quinta-feira, 24 de maio de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Tempo de trevas

RIO DE JANEIRO - Um radiologista de Goiânia mandou-me e-mail levantando um problema a ser criado pelo apagão ou pelo racionamento de energia. A medicina moderna, desde Hipócrates, sempre dependeu de avanços tecnológicos. Perdeu o caráter divinatório. Hoje, os laboratórios, pouco a pouco, estão desvendando a realidade e o mistério do nosso corpo.
Como ficarão os encarregados de tirar radiografias ou tomografias computadorizadas e de fazer análises clínicas? Nos ambientes hospitalares, é possível que o governo os poupe dos cortes e até mesmo do apagão. E haverá sempre a possibilidade de usar o gerador para quebrar o galho.
Mas nos consultórios particulares? Nas clínicas conveniadas pelos diversos planos de saúde? Um acidente grave não vai esperar que a luz volte. E todos sabemos que a presteza do primeiro socorro é fundamental para salvar uma vida.
Já tive um parente próximo, tão próximo que era meu pai, que morreu durante um pequeno e inesperado corte de luz. Tinha 91 anos, estava doente mesmo, não foi caso de ação contra a Light ou contra o Estado.
Num momento desses, em si doloroso, a falta de luz é uma crueldade a mais, uma excrescência imerecida seja lá por quem.
Meu irmão médico não poderia salvá-lo mesmo, chegara a sua hora, a hora da hora, que todos teremos um dia. Mas, se fosse outra a situação, o pai teria morrido por uma banal falta de luz -literalmente isso: falta de luz.
Goethe morreu pedindo luz, mais luz. A tradição coloca uma vela acesa na cabeceira dos moribundos, nos corpos atropelados de nossas ruas. É um símbolo piedoso, não um serviço.
E é esse serviço que nos faltará nos próximos meses, talvez até o próximo ano. Entramos num milênio novo condenados anacronicamente ao retrocesso a um tempo de trevas.


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