São Paulo, quinta-feira, 24 de maio de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Acerca da moralidade pública

MARILENA CHAUI

A confusão entre moral privada e pública produz um obscurecimento acerca da essência da política, ou seja, faz aparecer o moralismo.
De fato, ao confundir os dois espaços, o moralismo suscita dois equívocos igualmente graves: o de tomar o espaço político segundo os critérios da vida familiar (regida pelo princípio da autoridade pessoal e da afeição) e das relações de mercado (regidas pelo princípio da propriedade privada dos meios de produção), quando, na verdade, a política nasce para responder aos problemas, conflitos e contradições dessas duas esferas privadas, não podendo ser regida pelas mesmas normas que as regem.
E, em segundo lugar, ao se supor que as normas e regras da moralidade privada devem estar em vigência na política, será preciso supor que o espaço político encontra-se definido antes da própria política e que esta é simplesmente, no nível público, a retomada de normas preexistentes, de sorte que perdemos o essencial da política, isto é, a diferença entre o privado e o público, fundadora da política, que a faz ser uma ação nova produzida por uma relação nova; novidade que a faz ser sempre indeterminada quanto ao seu curso, mas não indefinida quanto às suas regras.
É isso que a palavra "república" sinaliza e significa. Por isso mesmo o Estado não é nem pode ser uma grande família nem uma grande empresa: se for, não há política possível. Em outras palavras, a moralidade política se define pelas ações e pelo curso das ações numa lógica nova que não é a da autoridade (como na família) nem a da força (como no mercado), mas a do poder.
Pelo mesmo motivo, não se pode falar em "zonas de amoralidade" na política, uma vez que isso significa que estamos supondo uma moralidade externa e heterogênea à política, moralidade puramente íntima, que fica em suspenso para que a ação política se realize com eficácia. Distinguir o público e o privado, afastar o moralismo, admitir a dimensão fundante da ação política e a indeterminação de seu curso não pode significar "vale-tudo", e sim que nos cabe saber como é construída a moralidade propriamente política no curso de ações das quais não temos controle pleno.
Tomemos dois exemplos aparentemente sem ligação, mas que podem nos auxiliar a compreender o que é a moralidade política: o caso da "vaca louca", na Europa, e o caso do "apagão", no Brasil. Ambos têm um primeiro traço comum: a ausência do Estado como responsável pelo bem-estar dos cidadãos, pelo direito à saúde e pelo direito ao mínimo trazido pela tecnologia moderna.
No caso do gado europeu, o abandono das políticas estatais de saúde pública e sua privatização acarretaram a ausência prolongada de fiscalização das condições sanitárias; no caso do apagão, a submissão às imposições do FMI de solução do "déficit público" pelo não-investimento em áreas de serviços à população acarretou um abandono da política energética, cujas consequências só poderemos avaliar quando, em futuro próximo, pudermos medir a queda da produção e o aumento do desemprego, para não mencionarmos o desrespeito a todos os direitos dos cidadãos, contido nas medidas governamentais.


A moralidade pública depende da qualidade das instituições como expressões concretas do lugar e do sentido da lei
Nos dois casos vemos o que se passa quando a lógica do poder deixa de estar referida aos direitos dos cidadãos e à instância generalizadora da lei para tornar-se um jogo de forças em competição no qual sempre sabemos quem será o perdedor.
Mas esses dois casos indicam também e sobretudo que o poder político não se define pela distribuição de recursos escassos. Se assim fosse, toda instituição de benemerência e de filantropia exerceria poder político. É bem verdade que o modelo neoliberal, ao destruir a institucionalidade estatal e alijar os direitos sociais da esfera política, não poderá pensar o poder senão como distribuição filantrópica de bens escassos (escassos para quem, cara pálida?), mas esse pensamento, exatamente, indica a morte da política por sua perfeita confusão com os princípios da propriedade privada dos meios de produção e com a lógica da força, que define o mercado, assinalando a presença difusa do despotismo (em geral, não esclarecido).
Por onde passa a moralidade política? Desde Aristóteles, o pensamento político aprendeu a distinguir a justiça distributiva e comutativa e a justiça política. A justiça distributiva se refere aos bens partilháveis (é a economia), a justiça comutativa se refere às penas e recompensas legais que reparam danos cometidos contra cidadãos (o tribunal); mas a justiça fundante se refere a um bem que não pode ser partilhado e distribuído, somente participado: o poder político.
O poder se refere ao governo e este se refere à maneira como a totalidade dos cidadãos participa do poder, definindo para a sociedade a justiça distributiva e a comutativa. Por isso mesmo há indeterminação do curso da ação (pois todos dela participam), mas não há amoralidade (pois há regras definidas pelos cidadãos). E há imoralidade política quando um governo opera não só ferindo a justiça distributiva e a comutativa, mas sobretudo quando exerce o poder não em nome dos cidadãos e sim em nome de um grupo poderoso de cidadãos. Não se pode falar em "bens escassos" distribuídos ao banco Marka nem de "bens escassos" distribuídos a parlamentares em momentos cruciais de votação nem de "bens escassos" na parte de dinheiro público que sempre comparece para garantir uma privatização.
Todavia não podemos pensar apenas com a idéia de justiça política entendida como o direito de participação de todos os cidadãos no poder. O pensamento político moderno, exatamente ao propor a distinção entre virtudes privadas e poder político, afirmou dois princípios nucleares da lógica do poder com os quais podemos nos acercar da moralidade propriamente política. Em primeiro lugar, a compreensão de que toda sociedade está dividida originariamente entre o desejo dos grandes de comandar e oprimir e o desejo do povo de não ser comandado nem oprimido, definindo o lugar do governante não acima das classes e sim como aliança necessária com o desejo do povo e como contenção do desejo dos grandes (pois o desejo destes aniquila a instância pública da política).


Ao desqualificar os partidos políticos e a imprensa, Giannotti desqualifica a sociedade civil e os cidadãos
Em segundo, a compreensão de que a moralidade pública não depende do caráter dos indivíduos e sim da qualidade das instituições como expressões concretas do lugar e do sentido da lei. A lei é o pólo da universalidade numa sociedade dividida em classes (ou cindida em particularidades conflitantes e contraditórias); pólo no qual se definem a cidadania e as formas de seu exercício.
Se observamos esses dois princípios, podemos dizer que, neste momento, reina a mais completa imoralidade política no Brasil, o governo é dos grandes para os grandes (a propalada "governabilidade") e as instituições públicas estão corroídas porque a instância da lei foi substituída pela idéia publicitária de "credibilidade".
Examinemos brevemente o modo de aparecer dessa imoralidade nos últimos tempos. Ela tem aparecido sob a forma do embuste, isto é, como a decisão de impedir que os cidadãos possam deliberar, decidir e formar uma opinião consistente sobre as ações políticas porque estão impedidos de demarcar fato e versão, verdade e mentira.
Se nos recordarmos do clássico estudo de Hannah Arendt sobre a mentira política, haveremos de lembrar que ela aponta os dois instrumentos empregados pelo governante para realizar o embuste. Um deles são os "relações públicas", que operam com os recursos da publicidade e têm como princípio a idéia de que os cidadãos são inteiramente manipuláveis pelas opiniões vendidas no mercado político; são os agentes da propaganda do governo.
O outro instrumento são os "resolvedores de problemas", caracterizados pela autoconfiança extrema e pela certeza de sempre prevalecerem porque sabem se livrar dos fatos, tanto destruindo documentos, memórias e testemunhos, como produzindo uma irrealidade que vem à existência, por meio de discursos, chantagens, coações, distribuição de benesses, ameaças veladas ou diretas e sobretudo pela desqualificação sumária dos opositores; são os assessores do governo. Juntos, relações públicas e resolvedores de problemas criam as condições para que o governo nunca possa ser desmentido, pois toda contraprova é invalidada por princípio, graças ao ocultamento da realidade sob a imagem irreal e graças à desqualificação prévia dos oponentes.
Se essas observações estiverem corretas, podemos fazer alguns reparos severos no artigo escrito por meu colega José Arthur Giannotti, publicado nesta página (17/ 5).
Depois de definir o poder como distribuição de bens escassos e de concebê-lo como uma competição cujas regras devem comportar espaço de tolerância para certas faltas (embora o autor não nos diga quais faltas devem ser toleradas nem por que o devem), é dito que a opinião pública deve ser mobilizada na determinação da linha de tolerância entre o que o político deve ou não fazer.
A questão, portanto, é saber quem mobiliza a opinião pública para isso. Os partidos de oposição? Não, diz o autor, pois o fazem como ditadores ou jacobinos, uma vez que não reconhecem que o poder democrático é um misto de deliberação e decisionismo e que empregam o juízo moral como arma para acuar o adversário, submetendo a investigação da verdade à sua própria vitória.
A imprensa? Não, pois embora os jornalistas aspirem pela universalidade e desejem ser guardiães da moralidade pública, trabalham para uma particularidade, a empresa capitalista de que são funcionários. Na medida em que insistem em fazê-lo, transformam a imprensa, no melhor dos casos, em igreja e, no pior, em servidora de interesses totalitários, uma vez que não reconhecem ao fato político "sua necessária aura de amoralidade" e "zonas de indefinição".
Se, portanto, nem os partidos políticos oposicionistas nem a imprensa são os instrumentos políticos de mobilização da opinião pública na definição da linha de tolerância política, quem é o agente dessa mobilização? Só pode ser o próprio governante! Com isso, caímos nas malhas dos relações públicas e dos resolvedores de problemas, isto é, da produção deliberada do embuste. E fazemos o jogo da chamada "tolerância passiva", em que toleramos o governante que nos engana porque é ele quem faz as regras da ausência de regras.
Qual o equívoco de Giannotti? Confundir a indeterminação própria da ação política com uma suposta indefinição de suas regras e deixar nas mãos do governante uma definição nômade, que varia segundo seus interesses. Por outro lado, ao desqualificar os partidos políticos e a imprensa, Giannotti desqualifica politicamente algo mais profundo: a sociedade civil e o conjunto dos cidadãos.
Se é o governante quem diz o que é moral, o que é imoral e o que é amoral na política, se é ele quem nos diz o que é e o que não é tolerável, resta indagar por que Giannotti coloca o totalitarismo como ameaça futura, vinda das oposições e da imprensa.


Marilena Chaui é professora de filosofia política e história da filosofia moderna da USP, autora, entre outros, de "Cultura e Democracia" (Ed. Cortez) e "A Nervura do Real" (Companhia das Letras). Ela escreve frequentemente no caderno Mais!.



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