São Paulo, domingo, 24 de maio de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O comércio é parte da solução para a crise

PASCAL LAMY


Há uma coisa que sabemos: colocar obstáculos ao comércio não promove o crescimento nem salva postos de trabalho


A CRISE econômica que o mundo enfrenta é a mais grave em várias gerações. A situação é muito séria e ainda vai piorar antes de começar a melhorar. À medida que a economia mundial se deteriora, os responsáveis pela formulação de políticas recorrem a todos os meios disponíveis para lutar contra a redução da produção, a alta do desemprego e a apatia da demanda.
O comércio, dentro do contexto de um sistema de normas acordadas em nível mundial, vem exercendo efeito multiplicador sobre o crescimento há mais de meio século. E o sistema internacional de comércio, supervisionado pela OMC (Organização Mundial do Comércio), vem sendo uma eficaz apólice de seguro contra o protecionismo. A abertura do comércio contribuiu em grande medida para tirar centenas de milhões de pessoas da pobreza extrema e para melhorar as relações entre os países.
A queda no volume de comércio a que estamos assistindo agora não é nenhum mistério. A diminuição da demanda mundial de bens de consumo e o esgotamento do financiamento do comércio resultaram em tesouros vazios e uma carteira de pedidos em branco.
Para sustentar a demanda, os governos terão que estimular suas economias, e isso significa que precisarão empregar medidas fiscais, já que os juros já caíram para os níveis mais baixos da história. Esses programas de estímulo fiscal exigem certa coordenação para evitar que algumas economias retomem o crescimento muito antes e se convertam nos destinos preferidos das exportações.
Mas há outro perigo à espreita que pode agravar ainda mais a situação: a ameaça de um retorno das políticas isolacionistas da década de 1930.
Embora existam dúvidas sobre como os diversos programas nacionais de estímulo afetarão a economia, há algo que sabemos: colocar obstáculos ao comércio não promove o crescimento nem salva postos de trabalho. Ao contrário: a história está repleta de exemplos de medidas protecionistas e isolacionistas capazes de agravar uma situação econômica difícil.
A tristemente célebre Lei Smoot-Hawley elevou bruscamente as tarifas aplicadas pelos EUA sobre mais de 20 mil produtos. Como seria de esperar, outros países reagiram com medidas retaliatórias, elevando as tarifas que aplicavam sobre produtos americanos. E veio a Grande Depressão.
O estabelecimento do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês), depois da Segunda Guerra Mundial, e sua transformação na OMC de certo modo garantiram a impossibilidade, desde os anos 1930, de os governos restabelecerem as políticas desastrosas de empobrecimento do vizinho.
Mas as normas da OMC estão longe de ser herméticas, e mesmo dentro do âmbito dessas normas os governos podem empregar medidas que concretamente limitem o comércio, como políticas antidumping, exigências relativas à concessão de licenças, subvenções ou normas de contratação.
A situação está evoluindo rapidamente e, até a data atual, a maioria dos membros da OMC parece estar mantendo dentro dos limites as pressões internas pró-protecionismo.
Isso não quer dizer que os governos devam permanecer ociosos enquanto aumentam as perdas de empregos e cresce a agitação social. Mas quer dizer que a proteção dos empregos não significa protecionismo.
Proteção social quer dizer melhora da formação e da assistência à saúde, mais flexibilidade nos planos de pensão e uma rede de seguridade social que impeça que os trabalhadores deslocados pela concorrência estrangeira sejam relegados às margens da sociedade. Essas medidas são igualmente necessárias nos países ricos e pobres, se quisermos restabelecer o apoio público ao comércio.
Já chegou também o momento de reforçar as normas comerciais em escala mundial, tornando-as mais equitativas, transparentes e pertinentes.
Há mais de 60 anos essas normas, supervisionadas pela OMC, vêm proporcionando uma base firme para o crescimento econômico e o desenvolvimento. A conclusão da rodada de negociações mundiais de Doha reforçaria essas normas e ajudaria a deixar claro que o comércio é parte da solução da contração econômica.
A Rodada Doha, sozinha, não nos arrancará desta recessão cada vez mais profunda, mas um comércio mais aberto constituirá, por si só, um estímulo econômico importante.


PASCAL LAMY é diretor-geral da Organização Mundial do Comércio.

Tradução de Clara Allain


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