São Paulo, segunda-feira, 24 de junho de 2002

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VINICIUS TORRES FREIRE

Mortes do futebol e outras mortes

SÃO PAULO - A cada Copa, notamos que o futebol parece mais sem graça, em especial para nós, brasileiros e subdesenvolvidos. Trocamos um dedo de malabarismo e diversão por um palmo de eficiência crua, ao menos no que se refere ao jogo de bola, e infelizmente nem sempre só nisso.
É um clichê subdesenvolvido o auto-elogio da sensualidade, da ginga e da manemolência, palavra que aliás a princípio significava pachorra e fraqueza. É um pouco besteira, mas não só. A civilização industrial e a eficiência disciplinam o corpo e o tempo. Mais eficiência, menos tempo para adestrar a ginga.
O futebol profissional e seus ricos contratos potencializam a disciplina de corpo e mente. Meninos são escolados desde cedo em futebol eficaz. O custo de uma graça no campo é enorme. Uma derrota bonita implica a perda da rica publicidade da transmissão da final do torneio pela TV. Mas, a fim de eliminar o risco, pune-se a alegria. O jogo se reduz à sua regra, e a regra não muda para que se agreguem mais imprevisibilidade e criação ao jogo. É lógico, mas chato.
A brincadeira vadia e circense com uma bola no terreno baldio desaparece com a urbanização violenta. O campo baldio dá lugar à favela, à incorporação imobiliária. Em países que misturam civilização industrial e miséria, o sacrifício da labuta dura e mal paga se soma à pobreza sem lazer e ao crime.
Quantos talentos, para a bola ou outro, morrem jovens? Um de cada mil jovens será assassinado nas capitais do país neste ano. Dezenas de milhares estão no tráfico, em outro crime ou presos. O crime é jovem, masculino e pobre. Mata-se 70% mais nos fins de semana sem lazer, sem bola e com muita droga, cachaça, facada e tiro nos bairros pobres.
A miséria sem crime, pachorrenta e rural, manemolente, deu muito craque nos anos 50 e 60. O desenvolvimento exauriu parte da "graça subdesenvolvida" e produziu o matadouro de talentos. Nossa cultura ainda elogia a alegria, a liberdade e a humanidade das relações informais. Mas vivemos como robôs, sob exigências modernas e mortes primitivas.


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