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São Paulo, terça-feira, 24 de junho de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Os falsários

A radicalização de herança denunciada como maldita pelos que a radicalizam; o adiamento indefinido de qualquer esforço para retomar e para reconstruir o desenvolvimento brasileiro; a destruição dos instrumentos de uma política desenvolvimentista, sejam carreiras públicas, sejam organizações públicas como a Embrapa; a delegação da política econômica (e agora de parte das negociações da Alca) a quadros de terceira ordem intelectual, embasbacados diante das lições de seus professores americanos; a degeneração da reforma previdenciária em fiscalismo desesperado e truculento; o abandono de qualquer tentativa de simplificar e de reorientar o regime tributário; a redução da política social a medidas compensatórias cujo desacerto é ocultado por sua inoperância; a ausência de iniciativas destinadas a desconcentrar o acesso às oportunidades de trabalho, de crédito e de ensino; o fatalismo com que se encaram o aviltamento do salário e o aumento do desemprego como se fossem o preço a pagar pelo controle da inflação; o apelo à necessidade de manter a confiança financeira como justificativa genérica para esses males; o aproveitamento da fragilidade dos partidos para fragilizá-los ainda mais e a desfaçatez dos acertos que se começam a fazer, em nome da hegemonia política, com os grandes empresários e com a grande mídia - tudo isso pressagia duplo desastre para o país.
Desastre de desmoralização da democracia: foi para interromper tudo isso que o país votou em outubro de 2002. E desastre de desperdício de oportunidade histórica: agora temos de começar tudo de novo para forjar o instrumento político de alternativa nacional, trabalhista e produtivista.
Há quem veja na política externa do governo exceção a essa passividade. Não é. No tema mais urgente -a Alca-, a visita do presidente aos Estados Unidos mostra que o esvaziamento estratégico das negociações foi substituído por fórmulas e por procedimentos que nos devolveram ao rumo da rendição. Tudo contrabalançado pela busca de subegemonia na América do Sul, por homenagens a tiranetes latino-americanos do agrado do PT e pelas reclamações de sempre contra as injustiças da globalização. Washington e Wall Street não se impressionam com esses gestos; comemoram, embora como fato menor e previsível, a prostração do governo brasileiro, assumida pelo próprio Lula na metáfora reveladora e humilhante do boxeador nocauteado. Enquanto não tiver projeto interno, o Brasil não terá política exterior. O objetivo de ajudar a mudar a situação mundial será substituído pela ambição de figurar como potência média nos foros internacionais. Figurar sem dar aborrecimento. Figurar para não ser. Salvam-se o compromisso de reerguer o Mercosul e a promessa de aproximação aos outros países continentais em desenvolvimento.
A base dessa abdicação interna e externa é a falta de fibra e de clareza: a disposição de assumir o papel do bom operário que cuida dos pobres sem causar problema aos patrões e é, por causa disso, bem visto pelos graúdos do mundo. É também a determinação (até nisso míope) de manter a hegemonia política a qualquer preço, mesmo que seja a preço de infidelidade ao povo brasileiro. Dá nojo. A reação do país pode demorar. Quando vier, porém, virá para arrasar os que traíram o Brasil para gozar do poder.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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