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São Paulo, terça-feira, 24 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Serviço público e democracia

JOÃO BENEDICTO DE AZEVEDO MARQUES

A reforma da Previdência tem servido para ataques e soluções profundamente injustos para o servidor e o serviço público. Para os críticos apressados e desinformados e os demagogos e oportunistas de plantão, seria importante lembrarmos alguns princípios basilares do Estado democrático de Direito e a importância do servidor para a defesa da cidadania e da democracia (conferir art. 37 da Constituição).
Getúlio Vargas, logo depois da Revolução de 1930, entre seus méritos, carrega a decisão política de criar o Dasp (Departamento de Administração e de Serviço Público), que pela primeira vez tentou normatizar o serviço público, criando carreiras, estabelecendo concursos públicos para acabar com o nepotismo do Estado brasileiro. A partir de 1990 o presidente Collor, a pretexto de combater os marajás, iniciou uma campanha de desmoralização e desmonte do serviço público, com grave prejuízo para a população e o desmanche da administração pública. O final todos conhecemos, com o caçador de marajás sendo cassado pelo Congresso.
Para os esquecidos de hoje, é bom lembrar que o serviço público federal, estadual e municipal apresenta tem áreas de excelência, da universidade e escola públicas, formando profissionais de alto padrão, e os institutos de pesquisa, que lutam permanentemente com a falta de recurso e apoio. Quem não se lembra, com saudades, do Caetano de Campos e do Colégio Roosevelt, em São Paulo; do Colégio Pedro 2º e da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro; do Instituto Rio Branco, entre dezenas de áreas de excelência na formação de cientistas, professores, magistrados e diplomatas, entre outras carreiras? E, na área militar, o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e o Instituto de Engenharia do Exército, entre outros?
Agora, com o agravamento da crise econômica, pretende-se gerar receita punindo o funcionalismo público, como se ele fosse o responsável pela falência do modelo econômico que sempre privilegiou o capital financeiro especulativo. Fala-se em teto, com redução de vencimentos, taxação de inativos, fim do direito do servidor de se aposentar com o salário integral e vai-se por aí afora, com os áulicos batendo palmas para o funeral do servidor.
Há anos sem aumento ou reposição salarial, com exceção de poucas carreiras, em flagrante desrespeito ao art. 37, inciso X, da Constituição Federal, ninguém se lembra dos policiais que arriscam a vida no dia-a-dia do combate da criminalidade violenta, dos juízes e promotores de Justiça ameaçados ou mortos no exercício de suas funções, dos diplomatas que se arriscam em regiões de conflito, dos pesquisadores que recebem salários indecentes, dos médicos que precisam de vários empregos para sobreviver e dos professores, sempre esquecidos, com vencimentos incompatíveis com a relevância de suas funções.


Agora, com o agravamento da crise econômica, pretende-se gerar receita punindo o funcionalismo público


Há um silêncio constrangedor no tocante ao desaparecimento do dinheiro que o servidor de São Paulo recolheu durante mais de 50 anos para o Ipesp (Instituto de Aposentadorias e Pensões do Servidor Público), cujo rombo atinge bilhões de reais; história que se repete na União, com os sonegadores do INSS e com o dinheiro desviado dos antigos institutos de aposentadoria por categorias, usado em obras públicas. Com os recursos dos institutos se construíram estradas, escolas, postos de saúde e a nova capital, e esse dinheiro desviado nunca voltou para a Previdência pública. Todos se esquecem dos sonegadores e dos bancos, que cobram juros imorais e campeões em todo o mundo, que, junto com os ladrões do dinheiro público e o crime organizado, são os grandes responsáveis pelo desastre econômico da miséria e do desemprego!
E, fechando os olhos para a história e para a realidade, o governo embarca num caminho extremamente perigoso. Se a Previdência precisa ser reformada, se a conta não fecha, a correção precisa ser feita à custa dos responsáveis pelo descalabro, e não com a supressão de direitos inalienáveis dos funcionários.
Se houve excessos e abusos por parte de uns poucos servidores, com salários milionários à custa de incorporações e dobradinhas escandalosas, a culpa cabe ao Legislativo, que permitiu esses desvios, e não à imensa e honrada classe dos servidores. A reforma é necessária, mas ninguém aceita o esbulho de seus direitos.
Presidente Lula , Vossa Excelência, que é um trabalhador e um líder sindical, não pode renegar as suas origens e dar ouvidos àqueles que só sabem dizer "sim, senhor". Ouça a voz e siga o exemplo de Getúlio Vargas, revalorizando e dignificando o serviço público, base fundamental de um moderno e justo Estado de Direito.
Por derradeiro, é importante que o Congresso cumpra sua função com independência e altivez, expurgando o projeto de vícios de constitucionalidade, como, por exemplo, a taxação de inativos, a redução de vencimentos, a violação do princípio de independência dos poderes da República, entre outros, não se esquecendo o deputado e o senador de que o mandato é do eleitor, que não perdoa os que traem a vontade do povo e se curvam às pressões inaceitáveis. Se o pior acontecer, só nos resta o recurso ao Judiciário e a arma do voto para punir aqueles que fraudaram a esperança do povo brasileiro.

João Benedicto de Azevedo Marques, 64, procurador de Justiça aposentado, é conselheiro do Ilanud (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente). Foi presidente da Febem (1975-78), secretário da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (governo Mário Covas) e secretário nacional de Justiça (2003).


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