São Paulo, quarta-feira, 24 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Inovação, ciência, universidade e empresa

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

A percepção progressiva de que, por um lado, o Brasil alcançou uma produção científica compatível com sua economia e com os seus investimentos em pesquisas e, por outro, mostrou-se claramente atrasado no que diz respeito à inovação, ou melhor, no aproveitamento do conhecimento gerado para a produção de bens, vem atormentando não somente o mundo acadêmico nacional, mas certas esferas do empresariado e do governo brasileiros.
Expressão manifesta dessa preocupação é a recentemente elaborada legislação sobre a inovação, hoje transitando no Congresso Nacional e de iniciativa do MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia). A boa intenção do MCT é evidente e a mencionada legislação tem muita coisa boa, principalmente na remoção de preconceitos obsoletos, que, convertidos em normas burocráticas e práticas governamentais, sufocam a pesquisa no seio da iniciativa privada.
O mais perverso desses conceitos é o de que o Estado não pode investir em pesquisas em empresas privadas. Esta convicção tem um caráter moralista vesgo, pois é pouco provável que não se perceba que a beneficiária maior do aumento de produtividade, de produção de inovações, de conquista de mercados etc., que são os resultados da pesquisa, é a sociedade, e não a empresa.
Todavia a questão central não parece ter sido contemplada, ou percebida sequer. Se não há geração de inovação no Brasil na mesma medida em que há de ciência, é simplesmente porque não há demanda. Ora, dirão os nossos burocratas, como é que há demanda para ciência e não há para inovação? A resposta é simples: essas duas demandas são de natureza inteiramente distintas.
A motivação fundamental para a realização de pesquisas que levem à inovação é de ordem financeira, enquanto o que promove a pesquisa científica é o prestígio que o resultado obtido traz para o pesquisador e a instituição. Eis por que há uma tal disparidade entre ciência e tecnologia, ou melhor, entre resultados científicos e inovação, no Brasil.
Nosso problema se resume, portanto, a encontrar as razões da escassez da demanda por inovação no Brasil e, posteriormente, encontrar os meios que possam dirimi-las. Como, obviamente, essa deficiência é de natureza estrutural, de pouco adiante tentar resolvê-la com legislações que não interfiram na estrutura. E como o usuário -o "consumidor"- da inovação é a indústria, parece-nos fútil qualquer tentativa de resolver o problema na universidade, que representaria a "oferta".


Se não há geração de inovação no Brasil na mesma medida em que há de ciência, é porque não há demanda


Ou melhor, de pouco ou nada adianta forçar a universidade a produzir inovação se a indústria no Brasil não estiver preparada para usá-la. Além do mais, sem os valores apropriados, a universidade não tem a motivação e dificilmente desenvolverá competência para assumir uma responsabilidade maior com relação à inovação, embora possa vir a ser um assessor importante, porém secundário. Logo, é essencial que a universidade não abandone seus objetivos, que são a geração, a preservação, a organização e a difusão de conhecimento.
Já nos anos 60, foram realizados levantamentos nos EUA sobre que empresas adquiriam tecnologia de universidades, de instituições de pesquisas e de outras empresas. Verificou-se que aquelas que possuíam departamentos de pesquisas e desenvolvimento eram as que adquiriam tecnologia. Ou seja, não são as carentes em tecnologia, mas as que já dela dispõem -para incorporar uma inovação, é preciso ter uma certa capacitação tecnológica.
Portanto, se o setor industrial brasileiro nem inova, nem encomenda tecnologia a universidades e instituições de pesquisas, é porque este setor da economia nacional não realiza pesquisas. E por que a indústria brasileira não realiza pesquisas em proporções compatíveis com suas próprias dimensões? É possível que seja devido, em parte, a condições históricas da época em que um excessivo protecionismo abrandava a necessidade de um maior esforço em desenvolvimento tecnológico, como pretendem os adeptos do comércio livre.
Entretanto não restam dúvidas de que as empresas multinacionais, ao carrear instruções, verdadeiras receitas para aplicações de tecnologias já estabilizadas, elaboradas em suas matrizes, para o processo produtivo em suas filiais, dispensam qualquer esforço de desenvolvimento tecnológico próprio, inclusive interações e eventuais contratações de pesquisas em instituições nacionais.
Mais, impõem aos seus fornecedores condições que os induzem a optar por tecnologias desenvolvidas no exterior.
É verdade que os atuais fundos setoriais exigem do setor produtivo investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Não obstante, com poucas exceções, as empresas multinacionais têm preferido fazer uma "doação" desses recursos a universidades e outras instituições a realizar pesquisas próprias, o que, em princípio, derrota o propósito mais abrangente desses fundos.
E a maior ameaça é que venham as universidades e institutos a ser usados para, com esses recursos, realizar serviços de rotina ou pesquisas periféricas, que não se fariam na universidade não fosse pela remuneração. Por outro lado, também não seria razoável violentar a natureza das multinacionais, forçando-as a criar setores de pesquisa.
A única solução é, portanto, transferir para a empresa cuja matriz é localizada em território nacional pelo menos parcela apreciável dos recursos dos fundos setoriais, para que implantem autênticos departamentos de pesquisas e desenvolvimento. A nova Lei da Inovação permite essa transação. Só falta coragem para enfrentar as multinacionais.


Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 71, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.



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