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São Paulo, quinta-feira, 24 de julho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O pato rouco

RIO DE JANEIRO - Deve ser mania de perseguição: sempre que estou sozinho, disposto a ficar num canto, pensando em nada, há sempre um sujeito fanho por perto, falando demais, e ecleticamente, sobre os mais variados assuntos. Para purgar os meus pecados, não por curiosidade ou por deleite, presto atenção ao que ele diz, metade por masoquismo, metade por penitência mesmo.
Outro dia, procurei um lugar ermo onde pudesse ficar pastando, mas, cinco minutos depois, veio um grupo e, com ele, um pato rouco, que já estava dentro de um assunto do qual só percebi as beiras. Ele reclamava de qualquer coisa, acho que da rua Voluntários da Pátria esburacada, mas emendou assunto mais íntimo, uma cunhada que estava dando mau passo, ou já tinha dado, ou ainda ia dar. Fez prognósticos terríveis, as crianças, a sogra e, quando ia entrando na reta final, se alguém deveria ou não deveria tomar providências, engatou uma vasta espinafração na reforma da Previdência, havia votado em Lula quatro vezes, para nunca mais.
Eu me senti sórdido ouvindo a conversa alheia, ia me levantando para ir embora, mas o pato rouco entrou num tema surpreendente. Eu havia perdido alguma frase e não sei como ele fez o link da reforma da Previdência para a providência divina. Confessou que começava a ficar descrente de todas as religiões, já tentara as existentes e se decepcionara.
Fiquei tão entusiasmado que quase entrei na conversa, sugerindo que o pato rouco fundasse uma nova religião, inaugurasse um tabernáculo, um sítio sagrado, uma nova lei que nos salvasse a todos. Para animá-lo, prometeria ser o seu primeiro e mais fiel apóstolo. Juntos, ele com sua voz rouca, eu com minhas idéias piores do que a voz dele, poderíamos não chegar a lugar nenhum, mas tentaríamos.
Não foi preciso. Depois de declarar o mundo perdido e o homem sem solução, ele decidiu que começaria seu papel redentor convencendo a cunhada a tomar vergonha na cara.


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