|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
O pato rouco
RIO DE JANEIRO - Deve ser mania de perseguição: sempre que estou sozinho, disposto a ficar num canto, pensando em nada, há sempre um sujeito fanho por perto, falando demais, e
ecleticamente, sobre os mais variados
assuntos. Para purgar os meus pecados, não por curiosidade ou por deleite, presto atenção ao que ele diz, metade por masoquismo, metade por
penitência mesmo.
Outro dia, procurei um lugar ermo
onde pudesse ficar pastando, mas,
cinco minutos depois, veio um grupo
e, com ele, um pato rouco, que já estava dentro de um assunto do qual só
percebi as beiras. Ele reclamava de
qualquer coisa, acho que da rua Voluntários da Pátria esburacada, mas
emendou assunto mais íntimo, uma
cunhada que estava dando mau passo, ou já tinha dado, ou ainda ia dar.
Fez prognósticos terríveis, as crianças, a sogra e, quando ia entrando na
reta final, se alguém deveria ou não
deveria tomar providências, engatou
uma vasta espinafração na reforma
da Previdência, havia votado em Lula quatro vezes, para nunca mais.
Eu me senti sórdido ouvindo a conversa alheia, ia me levantando para
ir embora, mas o pato rouco entrou
num tema surpreendente. Eu havia
perdido alguma frase e não sei como
ele fez o link da reforma da Previdência para a providência divina. Confessou que começava a ficar descrente
de todas as religiões, já tentara as
existentes e se decepcionara.
Fiquei tão entusiasmado que quase
entrei na conversa, sugerindo que o
pato rouco fundasse uma nova religião, inaugurasse um tabernáculo,
um sítio sagrado, uma nova lei que
nos salvasse a todos. Para animá-lo,
prometeria ser o seu primeiro e mais
fiel apóstolo. Juntos, ele com sua voz
rouca, eu com minhas idéias piores
do que a voz dele, poderíamos não
chegar a lugar nenhum, mas tentaríamos.
Não foi preciso. Depois de declarar
o mundo perdido e o homem sem solução, ele decidiu que começaria seu
papel redentor convencendo a cunhada a tomar vergonha na cara.
Texto Anterior: Brasília - Eliane Cantanhêde: A caixa-preta de Paripueira Próximo Texto: Otavio Frias Filho: Cultura bandida Índice
|